Meditação nessa sexta feira santa.
Neste dia em que celebramos a Páscoa da Cruz, é uma graça divina mas também uma responsabilidade escutar a boa nova contida na narrativa da paixão de Jesus segundo João. Ela se diferencia das outras versões da paixão. Enquanto os outros sublinham os sofrimentos de Jesus, o quarto evangelho prefere mostrar como, mesmo no meio de todo sofrimento, Jesus tem a iniciativa de ir dirigindo os acontecimentos.
Que sentido tem para nós hoje receber em nossas vidas esse evangelho com essa visão aparentemente pouco histórica e mais teológica da paixão de Jesus que o quarto evangelho chama de “exaltação do Filho do Homem”?
De fato, a linguagem religiosa tradicional, baseada em textos bíblicos, principalmente nas cartas de Paulo e nos evangelhos sinóticos, fala da paixão de Jesus como sacrifício oferecido a Deus para que o Pai se reconciliasse com a humanidade. Por gerações e gerações, os judeus esperavam um Messias que fosse salvá-los do mal, libertá-los do império romano opressor e organizar o reinado divino no mundo. Tudo isso pareceu falhar. Paulo escreve aos coríntios que a cruz de Jesus é um escândalo para os judeus e loucura para os romanos (1 Cor 1, 23). Para tentar compreender isso que parece escândalo (obstáculo para crer) e parece loucura, as primeiras comunidades cristãs leram o que aconteceu com Jesus à luz das profecias do Servo Sofredor que “carregou sobre si os nossos pecados e foi castigado por causa de nossas culpas” (Is 53, 4 e 12). No contexto cultural deles, essa leitura ajudou a compreender a morte de Jesus.
Hoje em uma cultura como a nossa fazer uma leitura sacrificial da morte de Jesus fala de Deus como um pai que precisa ou ao menos aceita que seu filho morra como um condenado na cruz para que a humanidade pague a dívida que tem com ele e assim ele se reconcilie conosco. Esse tipo de teologia foi desenvolvido no mundo greco-romano e o teólogo que mais contribuiu para isso foi Santo Anselmo no século XI.
Hoje relendo a Bíblia a partir do contexto histórico e cultural, sabemos que a própria cultura judaica considerava qualquer derramamento de sangue humano como pecado, impureza. Não encontramos em nenhum texto direto do Jesus histórico que ele tenha encarado sua morte como sacrifício feito ao Pai. Ele parece encarou sua morte como testemunho necessário e fiel de que o projeto que o Pai tem para o mundo (o reino de Deus) é verdade e merece que por ele demos a vida. A morte de Jesus na cruz não foi um sacrifício oferecido a Deus. Foi um martírio vivido para nós, como foi a morte de Monsenhor Romero e de tantos irmãos e irmãs mártires que aceitaram morrer pela causa que defendem.
O melhor modo para falar da paixão de Jesus é proclamar que Jesus morreu na cruz para que todos possam viver e nunca mais ninguém morrer na cruz. Jesus morreu na cruz para que nós todos lutemos para descer da cruz os oprimidos e perseguidos que até hoje continuam crucificados. Nós celebramos a crucifixão para descrucificar os crucificados de hoje.
A cruz de Jesus é esse sofrimento assumido por missão, por amor e solidariedade a todos os seres humanos, especialmente aos mais pobres e os grupos e categorias marginalizados ou perseguidos pela sociedade dominante. O quarto evangelho, proclamado nessa sexta-feira santa, nos fala da cruz vitoriosa de Jesus. Faz isso para nos ajudar a ver que o amor e a solidariedade podem tornar vitoriosas as lutas dos pequenos por justiça e por paz. Na cruz Jesus nos entrega o seu espírito que é o Espírito Santo para nos animar nessa luta para que venha a esse mundo o reino de Deus.
Até hoje, tenho dificuldade de ver ressurreição presente na própria cruz, nas cruzes da gente. Tendo a não ver. Tendo a desanimar. Preciso celebrar a sexta-feira santa para receber da Palavra de Deus a confirmação de que na luta e na cruz dos pequeninos do mundo e mesmo no meu caminho pessoal de cruz. Cruz é o sofrimento e a carga que me é pedido pela missão e na missão, portanto é o sofrimento decorrente do amor e da solidariedade.
Deixo vocês hoje com um poema de Che Guevara:
“Cristo, te amo,
não porque desceste de uma estrela,
mas porque revelaste
que o ser humano tem lágrimas, angústias.
Chaves, para abrir as portas fechadas da luz.
Sim, tu me ensinaste que o ser humano é deus
um pobre deus crucificado como Tu.
E aquele que está à tua esquerda no Gólgota,
o mau ladrão, também é um deus” [1].
[1] - CHE GUEVARA – Poema, in ROSE MARIE MURARO, (organizadora), O Espírito de Deus pairou sobre as águas, Orações para o século XXI, São Paulo, Ed. Pensamento, 2004, p. 27.