Meditação para a Vigília Pascal
Vou confessar a vocês uma coisa íntima: Deus não me fez para viver na clausura de um mosteiro, nem consigo viver uma relação com um Deus narcisista que goste de ser adorado dia e noite por pessoas que centram suas vidas nesse tipo de testemunho. No entanto, quando penso nisso, sempre me vem ao coração uma clareza interior: Se eu tivesse de entrar de novo aos 18 anos em um mosteiro tradicional e me submeter a toda disciplina de uma comunidade de monges, como aquela que vivi quando era jovem, entraria, se fosse para apenas receber da comunidade a consciência da centralidade da celebração pascal na minha vida de fé.
Devo isso ao mosteiro de Olinda na época e agradeço muito a Deus e aos irmãos. Claro que aprendi isso ouvindo os testemunhos de irmãos mais velhos e lendo as histórias do Movimento Litúrgico que, nos anos 40 e 50, tomou como meta restaurar a centralidade da celebração da Páscoa na Igreja (durante a Idade Média e até os anos 50 isso tinha se perdido).
Lembro-me do testemunho de monges como Dom Odo Casel. Ele era um monge beneditino alemão. Durante toda a sua vida lutou pela restauração da Vigília Pascal. Em 1956, o papa Pio XII ordenou que toda a Igreja celebrasse a Vigília no sábado à noite. A emoção de Dom Odo Casel foi tão grande que faleceu (teve um infarto) ao cantar a louvação pascal daquele ano. Começou a cantar na Igreja e concluiu o cântico pascal no céu. Trinta anos depois, eu era muito amigo do padre Geraldo Leite, pároco de Ponte dos Carvalhos no Recife. Ele, ainda jovem, contraiu um câncer e lutou contra esse mal. Ele adorava celebrar a Vigília Pascal e compôs uma melodia própria e belíssima para esse cântico (Exulte de alegria). Naquele ano (1987), exatamente na hora em que, na Igreja linda que ele tinha construído, a comunidade cantava o exsultet pascal na vigília da noite santa, Geraldo entregava a sua alma a Deus.
Esses testemunhos me alimentaram e fortaleceram a minha caminhada. E a celebração pascal se tornou para mim uma espécie de força e terapia afetiva, sem a qual eu não imaginaria viver. Literalmente. Claro que sei e penso que o mais importante do que a celebração é a vida e a Páscoa não pode de modo algum se restringir à liturgia. No entanto, no começo, eu disse que queria fazer uma confissão e é essa: para mim, celebrar a Vigília Pascal é como êxtase místico que me alimenta e me dá forças na luta da vida.
Talvez por isso, embora tenha profundo respeito e compreensão por quem vive a fé mas não tem a mesma sensibilidade (há pessoas que têm razões para dizer: Não posso vir a essa celebração), mas confesso que fico sem saber bem o que dizer e como reagir. De todo modo, inclusive compreendo que, de fato, do modo como em muitas paróquias e Igrejas, a Vigília é celebrada, lamentavelmente se tornou apenas mais um rito formal e cansativo, que perdeu o encanto, aprisionou o Espírito na gaiola do ritualismo e aí de fato não adianta muito.
Aprendi com meu amigo Diego Pereira, jovem teólogo uruguaio, que há libertações pendentes. E essa liberação dos horários rígidos, das obrigações formais da Igreja para uma Páscoa ecológica da praia ou de um sítio no campo são válidas e importantes. Nesses casos, lamento a perda da dimensão comunitária da celebração e da dispersão talvez necessária.
Desde que compusemos o Ofício Divino das Comunidades,propomos às comunidades celebrarem de forma mais autônoma e mesmo mais simples a Vigília com todos os seus encantos e toda a sua beleza.
Quero aqui meditar sobre a Vigília que Santo Agostinho chama “a mãe de todas as Vigílias da Igreja”,sacramento de nossa libertação.
Não é fácil oferecer uma boa reflexão em uma noite como essa. A liturgia da Vigília Pascal já é em si mesma tão rica e eloquente que nem precisaria mais de uma palavra explicativa. Não dá para dizer em palavras um mistério tão grande que nos envolve e nos invade de luz. Essa Vigília è toda feita de símbolos que devemos percorrer da escuridão da noite para a luz nova dessa Páscoa. Aqui ensaiamos a acender no meio das trevas desse mundo o fogo novo da ressurreição e da vida para todos.
Com nossas vozes, às vezes, cansadas ou que parecem poucas diante da escuridão do mundo, proclamamos a palavra de um Deus que, no decorrer da história, realiza maravilhas pelo seu povo e cantamos o Aleluia, o cântico da vida que vence a morte. Depois da louvação pelo fogo e da escuta da Palavra de Deus nas páscoas do seu povo, celebramos a água nova que brota da fonte da vida nova de Jesus e nos alimentamos com o pão da ressurreição.
Basta olhar os rostos de vocês, (no coração me lembro de cada um/uma de vocês), que fica claro: em cada um de nós há uma aurora, há um novo início, uma vontade de viver mais intensamente e profundamente.
A nos guiar nesse caminho, nesse ano, recebemos o evangelho da ressurreição de Jesus segundo Lucas. Esse evangelho conta a visita de algumas mulheres, discípulas de Jesus ao túmulo do Mestre, nesta nova madrugada de Páscoa. Elas vinham acompanhando Jesus desde a Galileia. Estiveram presentes na hora da cruz e do sepultamento. Agora, no domingo de madrugada, levavam perfumes para envolver o corpo. Elas encontram removida a pedra do túmulo. Entram no túmulo que é uma caverna e veem que está vazio. O túmulo vazio não é, em si, prova ou sinal da ressurreição. Mas, as mulheres recebem a mensagem dos mensageiros celestes de que ele ressuscitou. Nada no mundo faz alguém descobrir que Jesus ressuscitou. Foi preciso os mensageiros de Deus para dizer e eles disseram às mulheres e não, em primeiro lugar, a Pedro e aos apóstolos. Como as Igrejas orientais dizem em sua liturgia, essas mulheres foram apóstolas dos apóstolos.
No começo do evangelho que escutamos está dito que as mulheres foram ao túmulo quando era ainda muito de madrugada. A aurora é isso: é a vinda da luz do sol nascente em meio à noite escura. O evangelho hoje nos chama a caminhar para além de todas as noites que vivemos dentro de nós mesmos e na sociedade, as noites pelas quais a nossa Igreja está passando. Temos de nos preparar para o fim da escuridão da noite. Temos de cultivar a luz da madrugada. Preparar espaços de aurora dentro de nossa vida e na vida do mundo. É preciso ir além dos chamados fake-news e não dar crédito ao que pertence à noite do mundo e sim preparar o espaço para que o sol do novo dia possa surgir.
É claro que não somos nós que fazemos o sol nascer mas testemunhar que Jesus ressuscitou é preparar o espaço para que a luz do sol resplandeça em nossa Igreja e no mundo. Quem opta pela aparência da claridade antiga não investe na luz nova da Páscoa. Quem se agarra a uma Igreja do passado, à nostalgia de uma Igreja presa a si mesma não participa efetivamente dessa procissão da luz que aqui encenamos no início dessa Vigília. É preciso sairmos dessa Vigília fortalecidos para anunciarmos uma corrida para a Vida e o futuro novo. Corramos, meus irmãos e irmãs, corramos juntos em direção a uma nova aurora do mundo.