Meu amigo Fred Morris
Na celebração ecumênica dos 50 anos de minha ordenação presbiteral, a maior surpresa foi ver chegar junto de mim, na hora H da celebração o meu irmão e amigo Fred Morris que mora em Los Angeles, Califórnia e que eu não via há pelo menos cinco anos. De fato, a vinda de Fred Morris para essa celebração tem um sentido simbólico muito profundo porque somos amigos desde quase o tempo de minha ordenação e, de fato, entre meus amigos, talvez ele tenha sido uma das pessoas que mais influiu no meu modo de compreender e viver o ministério cristão.
De fato, conheci Fred em 1970 quando, com sua família, ele chegou no Recife como missionário metodista. Era um homem ainda jovem, alegre e que facilmente criava relações de amizade. No Recife, queria justamente estabelecer relações ecumênicas com a Igreja Católica e eu era o padre ao qual Dom Helder havia confiado o trabalho ecumênico. Logo, Fred e eu nos tornamos amigos e criamos juntos um grupo de diálogo entre representantes de diversas Igrejas cristãs: a Equipe Fraterna. Esse grupo se reunia a cada semana para meditar a Escritura, para dialogar e para ser instrumento de unidade das Igrejas no Recife a serviço da vida e da promoção dos direitos humanos das pessoas mais pobres. Assim, nós entramos em um trabalho de organizar advogados para os presos políticos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade.
Desde o começo, Fred me impressionou pela forma como ligava a fé com a vida cotidiana, o seu senso de humanidade e sua capacidade de comunicação. Foi a primeira vez que vi a comunidade dos monges do Mosteiro de Olinda, (era a minha comunidade de vida), acolher um pastor evangélico e, sem nenhum problema, integrá-lo na vigília pascal que celebravam. É claro que o mérito era dele que tinha essa capacidade de se inserir e se adaptar a realidades tão diferentes (A liturgia era toda cantada em latim e o rito era muito diverso de tudo o que o pastor conhecia).
Com o tempo, nós dois nos tornamos mais do que amigos, irmãos espirituais aos quais um podia confiar sua vida e receber do outro uma palavra que era acolhida em nome de Deus para o crescimento comum. Naquele momento, eu vivia o conflito de um jovem membro de uma comunidade tradicional que queria abrir a comunidade a novos desafios dos tempos e sentia a reação de outros irmãos que não queriam essa abertura. Fred me ajudou muito a saber lidar com isso e a respeitar as diferenças. E provavelmente eu o ajudei a se inserir mais na cultura nordestina, o que para um norte-americano de nascimento e evangélico de formação nem sempre era tão fácil. Naqueles primeiros anos da década 70, quase não se passavam dois ou três dias em que não nos víamos ou não nos falássemos por telefone. Juntos tínhamos encontro com um jovem de um partido político clandestino ao qual ajudávamos a pôr em contato com advogados amigos que garantiam a defesa dos jovens presos em Itamaracá e quando possível (no meu caso) acolher e ajudar a esconder algum jovem perseguido (fiz isso com dois ou três em Olinda). Tudo pareceu desmoronar quando, de repente, em setembro de 1974, a notícia me chegou aos ouvidos: O pastor Fred Morris saía de sua casa no Espinheiro e foi abordado e sequestrado por quatro homens, colocado em um carro e desapareceu. Comuniquei o fato a todos os irmãos e irmãs da Equipe Fraterna, pedi apoio a Dom Basílio Penido, abade de Olinda, (Dom Helder Camara estava viajando) e comecei uma peregrinação por vários quarteis de Olinda e Recife a perguntar por Fred e a me apresentar como coordenador da equipe de trabalho a qual ele pertencia e, portanto, como responsável eclesial por ele. (Eu tinha logo percebido que a Igreja Metodista não fez e não iria fazer isso). Meu único contato de amizade em quem confiava sobre isso era a família da moça (Teresa) que na época era noiva de Fred. Em todos os cinco ou seis quarteis que fui, sempre era tratado da mesma forma, ou seja, em nenhum fui recebido pelo comandante e em todos me disseram secamente que não sabiam de nada sobre ele.
Percebi que o importante era que os algozes soubessem que a prisão dele tinha repercussões e que movia várias Igrejas. Organizamos então duas vigílias ecumênicas de oração pela liberdade de Fred Morris: (ele tinha sido preso junto com Alanir Cardoso, amigo militante do PCdoB, mas naqueles dias eu ainda não sabia disso). Realizamos a primeira vigília na Igreja Anglicana na rua Carneiro Vilela no Espinheiro. Igreja cheia, presente toda a Equipe Fraterna, além de amigos e amigas do pastor. Consegui permissão do abade para fazer a outra vigília na Igreja do Mosteiro de Olinda com a Igreja cheia de pessoas de várias Igrejas e muitos jovens do grupo de jovens que eu animava. Depois de vários dias (15) de luta, de repente, soube que Fred Morris havia sido colocado em um avião e expulso do Brasil.
Quase dez anos depois, (1983), fui a Nicarágua sandinista para um curso de Bíblia no Centro Ecumênico Antonio Valdivieso. E qual não foi a minha surpresa quando ali mesmo em Manágua me encontro com Fred Morris. Ele estava guiando um grupo de norte-americanos que visitavam a Nicaragua sandinista e alguém lhe falou de mim e que eu estava ali naqueles dias. Nós nos encontramos como se nunca tivéssemos perdido o contato e já naquela viagem quando voltei da Nicarágua parei dois dias em San José de Costa Rica onde Fred morava com Teresa. A partir dali nunca mais perdemos o contato e sempre mantivemos o diálogo de amizade e de cumplicidade em todas as situações da vida.
Em uma página do seu diário, o irmão Roger Schutz, fundador da comunidade ecumênica de Taizé afirma que a amizade é o rosto mais belo de Deus no mundo porque é gratuita e sempre inclusiva, isso é, aberta a todos e todas as pessoas próximas dos dois amigos. Isso sempre foi assim na amizade da gente. Através de Fred, me aproximei de pessoas que se tornaram minhas amigas e ele também de amigos meus. Mas, principalmente, Fred é para mim como um irmão mais velho que, pelo seu modo de ser, sempre me lembra Deus Amor e o seu projeto de um mundo justo e fraterno, aberto a toda a humanidade.
Hoje, Fred completa aniversário. E aos 86, ele se mantém jovial como o evangelho chama de “infância espiritual”. Assim, une a sabedoria e maturidade de um ancião e, ao mesmo tempo um coração de criança. Deus seja louvado por sua vida, pela missão que ainda nessa idade ele continua (é pastor de uma paróquia metodista hispânica, isso é, com irmãos e irmãs de cultura mexicana e da América Central, na periferia de Los Angeles).
Louvado seja Deus por tê-lo colocado em minha vida e pelo tanto que sempre aprendo com ele. Com ele aprendo a ser a pessoa que Deus quer que eu seja. Nem sempre consigo, mas ele me anima nesse caminho. Deus o fortaleça, o inspire sempre e ad multos annos!