Só ante-ontem, dia 08, soube que a Câmara Municipal de Olinda decidiu me dar a medalha de Direitos Humanos Dom Helder Camara. Sinto-me meio incoerente em receber essa medalha por vários motivos: o primeiro por saber que centenas de pessoas em nosso meio a mereceriam muito mais do que eu. Em segundo lugar, porque, em uma realidade como a que vivemos, o que significa receber uma medalha como se a luta pelos direitos humanos estivesse sendo vitoriosa?
Como o patrono da medalha é Dom Helder Camara e o vereador que propôs é um verdadeiro herói lutador nessa luta, me sinto obrigado a aceitar. Partilho com vocês a palavra que, mesmo se não vou ler ao pé da letra, mais ou menos quero dizer lá na Câmara de Olinda na cerimônia que será daqui há poucas horas:
Direitos Humanos, direitos divinos
É difícil expressar a alegria e a gratidão por receber da Câmara Municipal de Olinda, a medalha de direitos humanos Dom Helder Camara. Só posso agradecer de coração aos vereadores que me deram esse voto de confiança e principalmente ao querido irmão e companheiro de luta, o vereador Marcelo Santa Cruz, verdadeiro baluarte e exemplo nessa luta pelos direitos humanos e de todo o Cosmos.
Nessa cidade de Olinda, há exatamente 50 anos, fiz minha profissão de monge, no mosteiro São Bento. Naquele tempo, aprendi que aqui é o berço da República Brasileira, portanto da cidadania e da vigência, ao menos oficial dos direitos humanos conquistados para todos os brasileiros. Não tenho a consciência de merecer essa medalha, mas a recebo não porque mereço para merecê-la. Muitos companheiros e companheiras que estão conosco nessa luta pelos direitos humanos entraram nessa luta motivados por uma proposta política revolucionária de caráter socialista. A minha experiência é ter entrado nessa luta da mesma forma de Dom Helder. Assim como ele, entrei nessa luta pelos direitos humanos através do caminho da fé cristã. Desde que chegou aqui como arcebispo, Dom Helder deixou claro que ele nos propunha ver o rosto de Cristo e honrá-lo na pessoa de Zé, Severino e Maria. No rosto de toda pessoa humana, principalmente aquela que tem seus direitos humanos não reconhecidos.
Foi por ser cristão e como discípulo de Jesus que Dom Helder podia afirmar: “Minhas ruas, como minhas estradas, não têm margens, como não têm começo, nem fim... [1]
Com a ajuda de Deus, eu tento continuar nesse caminho.
Muita gente de minha geração lutou a vida inteira por uma transformação social e política na linha de uma revolução socialista. Como diz Dom Pedro Casaldáliga: Nesta hora histórica, não está ao nosso alcance nenhum tipo de revolução social ou econômica. Mas está aí a nossa disposição, a Utopia dos Direitos Humanos, com todas as suas várias gerações e consequências”[2].
De fato, estou chegando de um encontro para mim motivador. Na periferia de uma periferia pobre da grande João Pessoa, uma conversa com catadores de lixo, jovens desempregados da periferia sem perspectivas de vida e pessoas que estão se reunindo em um Centro de Defesa de Direitos Humanos na cidade de Santa Rita. Ontem à noite, essas pessoas me perguntavam a mesma coisa que no dia 26 de janeiro de 1969, Dom Helder dava como título a um discurso seu, em Nova York, no encerramento da 6a Conferência anual do Conselho Interamericano para a Cooperação Internacional (CICOP). O título da conferência do Dom e a pergunta dos pobres de Santa Rita ontem era: “Direitos humanos: farsa, sonho irreal ou realidade concretizável?”.
Dom Helder começa dizendo: “Que mistério se dá com os direitos fundamentais da pessoa humana, a ponto de todos os saudarem, com entusiasmo e emoção, mas na prática, ser tão difícil respeitá-los de fato e cumpri-los na íntegra?” Como dizer que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” se, dentro da própria ONU os Estados-membros não são iguais em dignidade e direitos?”[3].
Hannah Arendt afirma que “só conseguimos perceber a existência de um direito a ter direitos e a pertencer a uma comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam readquiri-los a não ser por uma nova organização da sociedade internacional”[4].
Como compreender que os Impérios do Ocidente, como os Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha usam os Direitos Humanos como desculpa para invadir países, matar impunemente pessoas e criar nos países dos outros um caos social e um rastro de miséria, apenas para os grandes continuarem exercendo o seu colonialismo e explorarem o petróleo e as riquezas minerais? De 2014 para cá, as estatísticas oficiais revelam que mais de 200 pessoas, na maioria latino-americanos, morreram tentando entrar na fronteira dos Estados Unidos. E o direito da pessoa migrar de um país para o outro foi um dos direitos assinados pela ONU em 1948. O que responder quando aqueles adolescentes da periferia de Santa Rita me diziam que quase todos eles tem um parente ou amigo jovem como eles que foi assassinado e ficou por isso mesmo? Um deles dizia: O máximo que a polícia faz é dizer que deve ter sido algum envolvimento em droga, primeiramente sem provar nada e, além disso, se fosse, quer dizer que aí é normal e certo ele ser assassinado?
Dom Helder, na época em que proclamou esse discurso sobre Direitos Humanos, lutava contra o artigo 477 que a partir do AI 5 permitia cassar os direitos dos jovens estudantes que fossem acusados de subversão. Dom Helder se levanta contra isso de forma forte e corajosa. E o argumento era “essa medida fere totalmente o 26o dos direitos consagrados na Declaração dos Direitos Humanos (509a Circular de 22 de abril de 1969)[5]. Hoje não há uma ditadura que impede os jovens de estudarem. Há toda uma sociedade que convive com o assassinato cotidiano de muitos jovens nas periferias de nossas cidades, sem que consigamos fazer uma ação organizada para impedir esses crimes.
Uma área em que Dom Helder tinha convicção de ser fundamental para o respeito e a implementação dos Direitos Humanos era o diálogo entre as religiões. Eu me lembro de que, apesar de minha total inexperiência na época, ele fez questão de discutir comigo o discurso que ele faria na Conferência das Religiões pela Paz em Kyoto, no Japão, em 1970. E ali, ele propunha vários passos para que as religiões possam se unir em um diálogo fraterno em função da paz e da justiça no mundo. No discurso (já citado) sobre Direitos Humanos em Nova York, ele propunha um pacto entre as minorias, como ele chamava, lúcidas e audaciosas, membros das mais diversas religiões do mundo a favor dos Direitos Humanos (p. 24).
Se, hoje, Dom Helder estivesse aqui ele diria que é inconcebível no Brasil de hoje, o que acontece aqui em Olinda e em Recife. Quase cada semana uma denúncia de algum ato de discriminação e ataque contra algum templo ou comunidade de religião afrodescendente. E o mais vergonhoso é que as pessoas que fazem isso dizem agir em nome do Evangelho e se dizem cristãos. É preciso que essa Câmara ajude a população a tomar consciência desse absurdo e nos ajude a transformar essa realidade.
Mas, aí tocamos no ponto fundamental de nossa conversa.
A Lei pode proibir as discriminações e punir as infrações, mas não pode obrigar ninguém a amar. Amar é uma coisa que só uma educação das consciências pode ensinar. Nelson Mandela afirmava: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem social ou ainda por sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender. E se podem aprender a odiar, podem também ser ensinadas a amar”[6]. É preciso manifestar esse amor na defesa das comunidades de matriz africana e das comunidades indígenas do nosso Estado.
Se Dom Helder estivesse aqui, ele insistiria conosco que não bastam direitos humanos individuais. É urgente a implementação de direitos coletivos, das comunidades indígenas em sua cultura própria e de tantas outras comunidades tradicionais. Também temos de reconhecer os direitos da Terra, dos animais e de todo ser vivo.
Finalmente, para mim, essa medalha que eu e meus companheiros recebemos hoje é um compromisso de levantarmos mais alto a bandeira da esperança e da democracia radicalizada – radicalizar a democracia – nessa hora em que forças retrógradas e que sempre se manifestam contra os Direitos Humanos dos pobres, dos negros e das minorias do mundo se investem agora contra o governo democrático e tentam impor outro nome para golpes inconsequentes. Podemos e devemos ser muito críticos, mas, ao mesmo tempo, profetas da esperança.
Em 1994, na Arena de Verona, Dom Hélder falava ao movimento italiano Mani Tesi (Mãos Estendidas): “…não estamos sós. Por isso, não aceito nunca a resignação nem o desespero. A última palavra neste mundo não pode ser a morte mas a vida! Nunca mais pode ser o ódio, mas o amor! Precisamos fazer com que não haja mais desânimo e descrédito e sim esperança. Nunca mais vençam as mãos enrijecidas contra o outro e sim o que o movimento de vocês valoriza: Mãos estendidas! Unidas na solidariedade e no amor para com todos”.
Permitam-me concluir com um poema:
CANÇÃO INCONVENIENTE
Falo pelos que não falam.
Grito pelas bocas mudas.
Estou além da mortalha,
Da mentira e da mordaça.
Sou a palavra de todos,
o som que incomoda os surdos,
(o sangue mais escondido
Por toda parte se espalha).
Sou a testemunha incômoda
Que vê as coisas ocultas
Atrás de qualquer muralha.
Canto pelos que não sabem
que a mais simples das canções
é um campo de batalha.
Lêdo Ivo
[1] - D. HÉLDER CÂMARA, Mil razões para viver, (Meditações do padre José), Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1978, p. 21.
[2] - DOM PEDRO CASALDÁLIGA, Direitos Humanos, revolução pendente, in Agenda Latino-americana 2015, p. 10 e 11.
[3] - Cf. Cf. DOM HELDER CAMARA, Circulares pos-conciliares, Vol IV, tomo III, Recife, CEPE, 2014, pp. 22 ss.
[4] - Cf. HANNAH ARENDT, O sistema totalitário, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978, p. 381.
[5] - Cf. DOM HELDER CAMARA, Circulares pos-conciliares, Vol IV, tomo III, Recife, CEPE, 2014, p. 157- 158.
[6] - frase citada no CD: DIVERSIDADE RELIGIOSA E DIREITOS HUMANOS, divulgado pela Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2006.