Neste domingo, as comunidades católicas e anglicanas meditam como trecho do evangelho o começo do capítulo 20 de Mateus. Ali, o evangelho relata uma parábola contada por Jesus sobre um patrão que chama trabalhadores diaristas para a sua lavoura e vai chamando grupos de lavradores durante todo o dia. Alguns começaram a trabalhar desde às seis da manhã, outros, desde às nove, outros foram contratados ao meio dia e finalmente outros já às três da tarde. Todos foram contratados sempre pelo salário normal de um diarista: um denário, ou uma moeda de prata. No final do dia, diz a parábola, o patrão começa a pagar pelos últimos contratados que só trabalharam duas ou três horas e estes ganham um denário. Ao ver isso, os que trabalharam o dia inteiro, imaginaram que ao chegar sua vez, iriam ganhar mais. Entretanto, receberam também um denário. Ficaram indignados e o patrão lhes diz: “Por que vocês estão revoltados? Eu não paguei a vocês o que tínhamos combinado? Vocês estão com inveja porque eu decidir dar aos últimos tanto quanto dei a vocês?”
Na lógica capitalista, esse evangelho é terrível, principalmente quando Jesus diz que Deus se parece com o modo de agir daquele patrão. Pessoalmente, acho horrível comparar Deus com um fazendeiro que contrata lavradores bóia-fria. Mas, de fato, vivemos em uma sociedade na qual na Europa ou Estados Unidos, os nacionais dizem aos migrantes: “Nós nascemos aqui e agora chegam vocês de fora e querem ter os mesmos direitos que nós à moradia, ao emprego, etc”. E aqui no Brasil, os brasileiros em São Paulo exploram os bolivianos e paraguaios sem documento. É o mundo da meritocracia. Jesus diz que Deus tem outra lógica: a da gratuidade e do direito de todos aos bens da vida à dignidade.
Certamente essa parábola de Jesus serviu aos primeiros cristãos para clarear a posição de Jesus com relação aos não judeus. Na Bíblia, "a vinha" é uma imagem clássica do povo de Israel - Cf. Is 5 e Salmo 80).
Nessa história, os "operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura" significam o povo judeu. Os trabalhadores da última hora são os não judeus, pagãos (goims). Para nós que vivemos num país no qual ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias), parece familiar o fato de Jesus descrever a realidade social da Judéia como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário.
Conhecemos ainda hoje essa realidade de pessoas sem emprego, aceitando qualquer oferta que lhe façam. Diferente é esse patrão que age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade. A maioria dos comentadores chamam essa história de "parábola dos trabalhadores da vinha". O nome mais indicado seria "Parábola do patrão original ou diferente".
A parábola é sobre o comportamento dele. Todo o problema para os primeiros contratados é que ele, além de começar a pagar pelos últimos, os iguala aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia. A parábola é sobre "os direitos" iguais que todos têm diante do convite de Deus e da recompensa que ele promete.
O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que "ele os equiparou a nós". No tempo de Mateus, o Talmud já dizia: "um pagão que retorna ao Senhor é maior do que o sumo-sacerdote do santuário"81. O judaísmo oficial aceitava com tranqüilidade que os pagãos podem ser salvos e que Deus oferece a todos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam sem problemas. Mas, não podiam compreender uma igualdade de condições entre Israel e os pagãos. Já vimos que mesmo Jesus (no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia) e Paulo na carta aos romanos dizem claramente: "primeiramente os judeus e depois os outros".
Aqui, Jesus dá um passo adiante e diz que Deus começa pelos últimos e dá a estes o mesmo que dá aos primeiros. Os rabinos diziam que "quando Deus promulgou a Torá ofereceu-a a todas as nações e somente Israel aceitou. Por isso, cada israelita tem tanta importância para Deus quanto têm todos os outros povos do mundo. Todos os dias, o judeu piedoso deve agradecer a Deus por não ter nascido ‘goim'. Só Israel foi capaz de observar a lei".
Na própria tradição bíblica, os profetas já insistiam na universalidade do amor de Deus e na igualdade de todos perante o Senhor. O profeta Amós chega a dizer: "Por acaso, não sois vós para mim, filhos de Israel, iguais aos filhos dos etíopes?, diz o Senhor. Acaso, não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, do mesmo modo como fiz os filisteus virem de Caftor e os sírios de Quir?" (Am 9, 7).
Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade. O fato é que, mesmo no plano social, se não se aceita partir dos últimos e dar a eles tanto quanto aos que são considerados "primeiros", nunca haverá justiça. No caso de Deus, a sua justiça é amor e compaixão e privilegia sim os últimos e os pequeninos. Essa parábola é para nós uma boa notícia (evangelho) se nós nos colocamos como últimos e pequeninos.