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Natal é o encontro do divino e do humano

Noite do Natal – Lc 2, 1-14

O direito de sermos humanos e humanas

                Quando nos encontramos em comunidade e nos saudamos na noite de Natal, nos damos mutuamente votos de feliz festa e nos abraçamos. Também famílias que não praticam a fé cristã reúnem-se para a confraternização. Isso é bom. Seja como for, o nascimento de Jesus produz, mesmo que indiretamente, unidade e postura de irmandade entre as pessoas. Apesar de muito pelo comércio e ameaçada pelo consumismo devorador, a festa do Natal ainda oferece algo de familiar e carinhoso para as pessoas que se abrem ao encontro humano e à convivência amorosa. Para quem é cristão/ã e se reúne em comunidade de fé, é importante ir além do folclore natalino para acolher a boa notícia que esta noite contém. 

A noite de Natal não é para celebrarmos o aniversário natalício do menino Jesus, mesmo porque ninguém sabe a data exata em que Jesus nasceu. Esta festa só começou a ser celebrada a partir do século IV, para dar conteúdo cristão às celebrações do solstício do inverno, no hemisfério norte. O texto do evangelho proclamado nesta noite é Lucas 2, 1- 14. É tão conhecido e repetido que sobre ele se construíram histórias e lendas. Quando escutamos essa história, já imaginamos a gruta de Belém, com o boi e o burro, esquentando o menino na manjedoura. O texto do evangelho não tem esses detalhes. É muito mais discreto do que o folclore que gerou. De qualquer modo, não podemos deixar de observar: o Evangelho diz que o nascimento de Jesus se dá na pobreza. Belém é onde os pais de Jesus foram obrigados a se recensear e onde hoje, o povo palestino é oprimido e sofre verdadeiro genocídio por parte do governo imperial de Israel. Podemos dizer: “Jesus já nasce como cidadão de uma colônia do império opressor”. 

Esse evangelho não quer ser relato histórico. É um olhar sobre a história do nascimento e da infância, mas a partir da ressurreição de Jesus. De fato, quando essa festa foi criada, chamava-se A Páscoa do Natal e era para anunciar a boa notícia do reinado divino no mundo. Por falar em “boa notícia”, ela está resumida nesse contraste entre a alusão inicial a  César Augusto, imperador do mundo e, do outro lado, a criancinha embrulhada em faixas  e deitada numa manjedoura na periferia do império. 

Aqui está a revolução, até então, totalmente impensável da própria imagem de Deus. Não se trata simplesmente de dizer que Deus assume estar na companhia dos pobres. É o que em grego se chama “kenosis”, o esvaziamento do próprio Deus, que leva às últimas consequências a sua atitude desde a criação: retirar-se para deixar espaço ao mundo. Como se Deus fizesse um movimento do alto para baixo e do centro para a periferia. Isso vai ser assim até a morte de Jesus na cruz. 

A revelação que, através do Natal, Deus faz, hoje é que o sentido último da vida não é o poder,  mas exatamente o seu contrário, o não-poder, a renúncia ao poder, a fim de que a vida, todas as vidas, possam florescer livremente. Esse evangelho diz que até um decreto opressor do imperador romano acabou servindo para que o projeto salvador de Deus pudesse se cumprir e Jesus pudesse nascer em Belém. É impressionante vermos nessa história o contraste entre duas realidades opostas. De um lado, a visão maravilhosa dos anjos que aparecem aos pastores no campo e o anúncio que eles fazem aos pastores. Ali tudo é luminoso. A mensagem é bela, consoladora e cheia de força. Do outro lado, vem a realidade que os pastores, ao irem a Belém encontram na manjedoura: uma criança pobre e indefesa, em um ambiente nada extraordinário. 

Há um contraste entre a palavra do anúncio dos anjos e a realidade que se pode constatar. Muitas vezes, esse é o maior desafio para a fé: ver uma coisa e crer em outra, ou melhor, descobrir por trás das coisas mais simples, triviais e humildes da vida, o milagre. 


É impressionante o quanto o Evangelho de Lucas é subversivo. Primeiramente a presença do protagonismo feminino. Quem primeiro profetizou o nascimento de Jesus foi Isabel ao ser visitada por Maria, grávida e agora, neste texto, os escolhidos de Deus são pastores, isso é, as pessoas mais excluídas da sociedade. Na sociedade da época,  pastores de ovelhas eram considerados como marginais e bandidos. São esses tipos de pessoas que se tornam os destinatários primeiros da boa notícia do Natal. Um cristianismo que não tenha como opção prioritária as classes oprimidas não faz sentido de existir. É preciso subverter a ordem instituída pela Igreja organizada como Cristandade.

Nesta noite, somos convidados/as a continuarmos esse caminho dos pastores a Belém. Não a Belém da Judeia, mas as muitas Beléns de hoje em nossa vida. Vamos testemunhar que os presépios de hoje não apenas os de arte armados para a festa, mas os presépios reais, nos quais a palha e a pobreza vêm como consequência da ambição e da opressão da sociedade e vamos ver nos pequeninos e pequeninas das periferias urbanas e do campo a Palavra de Deus que se faz carne hoje. 

Assumamos, então, as palhas e problemas das nossas vidas não como lugares feios dos quais temos vergonha e sim como presépios nos quais não mais o Menino Jesus e sim o Cristo ressuscitado em nós vem se revelar e nos conduzir para sermos mais e mais humanizados (as) e trabalharmos pela plena humanização das relações humanas e da organização do mundo. Assim, poderemos atualizar a palavra do anjo: “eu vos anuncio uma grande alegria: Hoje nasceu para toda a humanidade o Salvador que é o Cristo (libertador) Senhor (vencedor)”. Aleluia. Feliz Natal!

Já raiou a barra do dia

Por detrás da escuridão

Mais que sol brilha Jesus Cristo

Dentro do meu coração!

 

Deus vos salve, noite linda

De estrelas e de luz!

Há na terra um canto novo

Nasce o menino Jesus!

 

Não se assustem os pequeninos

Senhor Deus mandou dizer

Que seu filho quis nascer!

 

Bate palmas, minha gente!

Cantem os pobres com ardor

Cante o céu e cante a terra

Viva o menino-Senhor!

                                                                    (Zé Vicente)

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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