1º Domingo da Quaresma C – Lc 4, 1- 13.
Tentação não significa prova a vencer. Não é como teste, no qual se escolhe entre o bem e o mal. Tentação significa a escolha a fazer, em um projeto de vida, diante de duas ou diversas alternativas de caminho.
Conforme os evangelhos, ao se tornar adulto, Jesus se fez discípulo do profeta João, o Batista. Como profeta, aceitou ser mergulhado (batizado) no rio Jordão e fez a mesma travessia que antigamente tinha sido vivida na fronteira pelo povo hebreu que fugia da escravidão no Egito, quando, em nome de Deus, entrou na posse da terra prometida para conquistá-la. Conforme o evangelho, no batismo, através das palavras de um verso do Salmo 2, Jesus recebe do próprio Deus a confirmação: “Tu és o meu Filho”. Depois de contar o batismo de Jesus, o Evangelho de Lucas desenvolve a genealogia que mostra como Jesus, o novo Adão, se revela filho de Deus, como ser humano e inserido na descendência humana. No entanto, para viver a missão de filho de Deus, Jesus tinha de discernir o modo de viver isso. De acordo com a Bíblia, no Êxodo, o povo hebreu, depois de passar pelas águas do Mar Vermelho, para conquistar a liberdade e a terra prometida, precisou atravessar o deserto para aprender a viver a aliança de intimidade com Deus e aceitar ser conduzido pelo Espírito. Jesus também precisou passar por esse mesmo caminho, para aprender a viver a sua missão como profeta. Ele teve de discernir isso na solidão interior.
Nos anos 80 do primeiro século da era comum, os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas afirmam que foi no deserto que Jesus tomou as decisões fundamentais a respeito de como deveria cumprir a sua missão. Mateus conta que Jesus reviveu as dificuldades do antigo povo hebreu e recorreu à Palavra de Deus para vencer essas provocações. As comunidades cristãs, às quais o Evangelho de Lucas se dirige, não conheciam bem a Bíblia judaica. Por isso, esse Evangelho conta as tentações de Jesus não apenas como as antigas tentações do povo bíblico, mas como se assumisse e vencesse as mesmas tentações de toda a humanidade.
Conforme o Evangelho de Lucas, ao sair do rio Jordão, isso é, do batismo, Jesus é empurrado ao deserto pelo próprio Espírito de Deus. No relato poético desse Evangelho, aquele que divide (o divisor – em grego, diabolos) sempre tenta Jesus com o argumento: “Se você é mesmo o filho de Deus”...
Para o diabo, se Jesus se reconhece como “filho de Deus”, deve fazer milagre e, assim, mostrar ao mundo a força de Deus. No tempo em que Lucas escreve, várias religiões faziam isso e tinham muito poder e prestígio no meio do povo. Nas próprias Igrejas cristãs, muita gente pensava que esse seria um bom caminho para a nossa fé: convencer o povo através do milagre e garantir prestígio e poder para quem é de Deus e age em nome de Deus. Entendiam “milagre” como se fosse fazer algo mágico para além do que é possível humanamente. Mas milagre não é isso.
Até hoje, para canonizar alguém como exemplo de santidade, o Vaticano exige a comprovação de três milagres. Se a pessoa é mesmo santa, deve fazer milagres. Jesus não pensou assim e disse que Deus não quer isso. O Deus que Jesus acredita não é o deus do milagre e do poder. Se fosse esse deus que Jesus testemunhasse como filho, teria suscitado uma religião igual a tantas outras que o império romano já oferecia.
Foi no deserto mais profundo da solidão interior, onde nem os discípulos e discípulas o acompanhavam, que Jesus teve de vencer a provocação e optar pelo não poder, pelo não milagre e pelo não religioso. Conforme o Evangelho de Lucas, Jesus sempre responde ao diabo com a própria Palavra de Deus. Assume a insegurança no futuro, tanto para si mesmo, como para a causa que defende. Isso é o mais difícil para ele. É a fé como entrega total nas mãos do Pai que é sua vitória na tentação. Nesse sentido, Pedro Casaldáliga tinha razão ao afirmar: “Minhas causas são mais importantes do que minha vida”. A causa do reino é a causa da vida não apenas minha, mas de todos e todas.
Infelizmente, até hoje, a maioria das pessoas que assumem o poder nas instituições eclesiásticas e muita gente nas Igrejas continuam a acreditar que Jesus cedeu às tentações e seguiu o caminho proposto por Satanás: Fazem como se Jesus tivesse se servido do poder a seu favor para viver a sua missão de salvador do mundo. Alguns chegam a pensar: Sem poder, como vai conseguir fazer alguma coisa? Mostre que faz milagre. O sangue de Jesus tem poder. Conquiste o mundo e aí, sim, você será Salvador. Jesus se sentiu tentado a isso, mas resistiu e venceu a tentação. Percebeu que a Palavra de Deus indicava outro caminho: a cruz, isso é, a doação da vida pela inserção no meio dos pequenos e marginais e a solidariedade aos violentados e excluídos.
Para nós, a Quaresma não pode constar apenas de ritos litúrgicos. Tem de nos ajudar a retomar o caminho da fé como caminho do deserto. Precisamos descobrir que o diabo que tentou Jesus no deserto, não foi um “deus negativo, do mal e abstrato”, mas foi o apóstolo Pedro quando não aceitou que Jesus caminhasse para a cruz. “Diabo” também foram os saduceus, sacerdotes e fariseus acumpliciados com os poderes políticos e econômicos opressores que tentavam impor a Jesus um jeito falso e idolátrico de viver e conviver. “Diabo” era a própria Igreja cristã se institucionalizando para a qual Mateus, Marcos e Lucas escreveram os evangelhos.
Durante os seus 21 séculos de história, as Igrejas cristãs vivem o tempo todo essas tentações. Muitas vezes, as hierarquias das Igrejas caíram nas tentações que Jesus tinha vencido. É preciso ajudarmos as nossas Igrejas a compreenderem que assumir a cruz como caminho de missão implica em renunciar ao poder e ao status e doar a vida convivendo com as pessoas e povos injustiçados e assumindo a causa deles. Quem não compreende o Cristianismo social e a inserção em uma espiritualidade libertadora como continuidade do Êxodo bíblico e da Páscoa libertadora não compreende a cruz de Jesus e fica com o Cristianismo que o diabo propôs a Jesus. Pregam mágica, poder disfarçado e idolatria, sendo lobos em pele de cordeiro.
Nesta Quaresma, a CNBB[1] nos propõe como caminho de conversão pascal a Campanha da Fratenidade sobre Ecologia Integral. Conforme o evangelho, Jesus superou a tentação de usar o poder para mudar a natureza e se impor. Hoje, a humanidade tem de superar o antropocentrismo que pensa o ser humano como centro de tudo. Tem de superar a tentação de continuar usando os combustíveis fósseis, responsáveis pelo aquecimento global e Emergência Climática com sirenes gritando através de eventos extremos cada vez mais frequentes e letais. Tem de aceitar o caminho da inserção amorosa no meio dos pobres. Para Jesus, a renúncia ao milagre religioso e ao poder o levou à Cruz. Hoje, para nós, é como Mãe-Terra que Jesus se apresenta na cruz e, nesta Quaresma, nossa conversão precisa ser conversão ecológica e comunhão pascal com toda a criação divina. Defender os Direitos da Natureza tornou-se uma necessidade para a continuidade da vida humana na nossa única Casa Comum, a Terra.
Poema- oração de Dom Helder Camara:
Tuas tentações são sempre as mesmas
monótonas como um velho realejo
de u'a música só...
As mudanças são mínimas:
ao invés de transformar pedra em pão,
desafias a que transformem pão em pedra...
nem precisa propor que caiam de joelhos
para adorar-Te:
é a essência do sistema adorar o lucro,
tua imagem fidelíssima...
não lembras que os Anjos de Deus
não deixarão que machuquem os pés
os que por ti se jogam no abismo...
Na pressa em ter o reino
se jogam de qualquer maneira,
não raro de cabeça para baixo... (Recife, 10/11.3.1973)[2].