No princípio era a bênção
(e até hoje é o que nos dá força).
No Brasil, a CNBB conseguiu permissão de Roma para quando o dia 08 de dezembro cair em um domingo, mesmo sendo o 2º Domingo do Advento, celebrarmos a festa da Imaculada Conceição da Virgem Maria. Essa iniciativa visa respeitar a piedade popular que, em todo o Brasil, dá muita importância a essa devoção. Do outro lado, essa festa continua sendo resquício da romanização da Igreja no século XIX. Expressa o dogma proclamado pelo papa Pio IX em 1854: Em previsão aos méritos de Cristo na cruz, Deus preservou Maria do pecado original e de qualquer mancha do pecado, desde o primeiro momento de sua concepção.
Na compreensão do dogma, a concepção de Maria sem pecado original nada tem a ver com sexualidade. Não se refere à relação conjugal dos pais dela, mas acaba sendo compreendida pelo povo dessa forma. De todo modo, a ideia da concepção pura e santa da Virgem Maria é valorizada pela Igreja em contraposição a todas as outras concepções humanas que se dariam no pecado. De fato, durante muitos séculos, a nossa Igreja pareceu valorizar mais o pecado do que a graça e a bênção de Deus. E isso tem consequências para a vida e para a nossa relação com o mundo.
Pelo fato de ser uma crença totalmente alheia à espiritualidade bíblica e ao Evangelho, a imaculada conceição de Maria é mais um dogma católico que dificulta a unidade dos cristãos. Nenhuma outra Igreja, nem as Igrejas orientais aceitam esse dogma. Essa doutrina parte do pressuposto do pecado original e de uma teologia que hoje precisa ser revista.
O evangelho lido nessa festa pode nos ajudar. Trata-se do relato da anunciação do anjo a Maria (Lucas 1, 26- 38), ou seja, o anúncio da vocação de Maria. Conforme os exegetas, Lucas escreveu esse relato como um midrash, isso é, comentário narrativo de textos do primeiro testamento. O texto que Lucas tem como referência é principalmente Sofonias 3, 12 em diante. O profeta que viveu no tempo imediatamente anterior ao cativeiro da Babilônia, depois de textos pesados e pessimistas, conclui sua profecia convidando o povo à festa da alegria messiânica. No tempo do profeta, mais ou menos pelos anos 622 A. C., o motivo da festa e da alegria às quais o profeta convida é que o rei Josias realizava uma renovação da unidade do povo através de uma reforma social e religiosa.
Agora, no Novo Testamento, Lucas retoma quase as mesmas palavras do profeta no anúncio do anjo da Maria. Conforme as profecias (do livro de Daniel), Gabriel é o anjo encarregado de revelar o segredo messiânico das 70 semanas nas quais o Messias vai se manifestar. É esse anjo que fala com Maria. Ele já havia anunciado o nascimento de João Batista ao sacerdote Zacarias. Agora ele anuncia a vinda do Messias não no templo de Jerusalém, mas em uma casa pobre de Nazaré. E não a um homem responsável pela descendência, chefe de família patriarcal e sim a uma adolescente pobre. “Cheia de graça, agraciada ou graciosa” é o termo com o qual sempre nos textos bíblicos, o esposo saúda a amada com a qual quer casar. Nesse relato, Maria é a imagem do povo de Deus que recebe de Deus uma palavra nova de casamento e de gestação do ser humano novo que é o Cristo. Maria sintetiza a nova Jerusalém, com a qual Deus quer refazer a aliança de amor e de bênçãos que tinha estabelecido e que o povo mesmo rompeu e abandonou. Então, Maria é imagem da humanidade nova.
É preciso reler esse evangelho, substituindo o nome de Maria pelo de cada um/uma de nós. O que o anjo nos diz é que estamos grávidos/as do Cristo, no sentido do ser humano novo. Dentro de nós temos esse Cristo, homem novo que precisamos viver em nós. Como Paulo afirmou: “Já não sou eu que vive. É o Cristo que vive em mim”(Gl 2, 20).
Um ser humano novo ou renovado foi a proposta de Paulo na carta aos efésios e colossenses, como no século XIX era o que Marx tinha em vista ao falar de Socialismo e nos nossos tempos era a proposta de Che Guevara.
Em si as Igrejas deveriam ser ensaio dessa humanidade renovada. Infelizmente, quando se ligam ao poder e quando colocam a lei acima das pessoas se tornam o contrário disso. Em uma sociedade dominada pelo desamor e pela consequente indiferença em relação ao outro, nossa primeira revolução terá de ser essa: sermos exigentes conosco mesmos/as em relação à ética nas relações pessoais, na capacidade de conviver com as diferenças e principalmente não deixar que os adversários e inimigos nos roubem a única coisa que ninguém poderá tirar de nós: a humanidade e a capacidade de amar.
Intolerâncias, rigidez de princípios, queimação de pessoas são coisas que sabemos existir entre pessoas, na competição do mundo e no mercado de trabalho. A luta pelo poder dentro do sistema que nos oprime nos deseduca mesmo em nossas relações na família e nos grupos aos quais pertencemos. Claro que as pessoas todas vêm com suas marcas de infância, suas feridas de educação e suas características de caráter. E aí tanto nos grupos como na caminhada da libertação, os conflitos pessoais se tornam comuns e inevitáveis. No entanto, existe um modo não violento para administrar os conflitos, principalmente para nós que trabalhamos por ecumenismo nas Igrejas e nas religiões e por unidade e frente ampla nas esquerdas que querem transformar o mundo. E uma coisa que ajuda nesse embate é não nos sentirmos tão importantes, tão adultos assim. Quando nos permitimos retomar o coração de crianças relativizamos essas coisas e nos tornamos mais capazes de reconciliação e de caminhar juntos, mesmo em meio às diferenças de sensibilidade e de mentalidade.
Cada um/a de nós tem dentro de si um berço no qual ainda resiste uma criança frágil e pura. Cada um/a de nós tem no mais íntimo do seu ser uma espécie de imaculada conceição, isso é, um resto de inocência (não ingenuidade) que subsiste a todas as intempéries da vida. Como está a nossa relação com esse núcleo profundo do nosso ser? A construção de um mundo novo de justiça ecossocial e paz precisa de que acessemos essa criança dentro de nós e possibilitemos que os outros com os quais convivemos também acessem. Na música Bola de meia, bola de gude, Milton Nascimento canta:
“Há um menino, há um moleque Orando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança Ele vem pra me dar a mão”.