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No princípio era e ainda é a bênção

08 de dezembro: Festa da Imaculada Conceição. 

 No princípio era a bênção (e até hoje é o que nos dá força). 

                Para a maioria do povo católico no Brasil, Imaculada Conceição é o nome ou título de Maria, mãe de Jesus. Nem todo mundo sabe que se trata da crença, conforme a qual, Maria teria sido concebida no útero da sua mãe, sem a mancha do pecado original. 

Conforme essa compreensão, afirmar que Maria foi concebida sem o pecado original nada tem a ver com sexualidade. Não se refere à relação conjugal dos pais dela que teria sido sem mácula de pecado, em contraposição a todas as outras relações que geram filhos, essas dominadas pelo pecado. No entanto, infelizmente, essa crença acaba sendo compreendida assim. Ao afirmar que, em previsão aos méritos de Jesus na cruz, a concepção de Maria foi sem pecado, enquanto todas as outras concepções humanas se dão no pecado, a Igreja Católica parece restringir a graça da cruz de Jesus que privilegiou a sua mãe e mais ninguém. Além disso, ao destacar essa compreensão, na cultura vigente do século XIX, quando esse dogma foi proclamado, a Igreja Católica parecia valorizar mais o pecado do que a graça e a bênção de Deus. E isso tem consequências para a vida e para a nossa relação com o mundo. 

A Bíblia e o Evangelho não falam nada sobre como teria sido a concepção de Maria. Por isso, a crença de que ela foi isenta do pecado desde que foi concebida é mais um dogma católico que dificulta a unidade dos cristãos. Nenhuma outra Igreja, nem as Igrejas evangélicas, nem as orientais aceitam esse dogma. Essa doutrina parte do pressuposto do pecado original, conforme o qual, toda pessoa já nasce no pecado, como herança de Adão e Eva. Atualmente, com a teologia que temos, essa crença precisa ser totalmente revista e a linguagem da graça tem de ser outra.  

O evangelho lido nessa festa pode nos ajudar nessa tarefa. Trata-se do relato da anunciação do anjo a Maria (Lucas 1, 26- 38), ou seja, o anúncio da vocação de Maria. Conforme os estudos bíblicos, Lucas escreveu esse relato como midrash, isso quer dizer, como comentário narrativo  de textos do primeiro testamento. O texto que Lucas tem como referência é principalmente Sofonias 3, 12 em diante. Esse profeta que viveu no tempo imediatamente anterior ao cativeiro da Babilônia, depois de textos pesados e pessimistas, conclui sua profecia convidando o povo à festa da alegria messiânica. No tempo do profeta, mais ou menos pelos anos 622 a. C., o motivo da festa e da alegria às quais o profeta convida é que o rei Josias, soberano da época, realizava uma renovação da unidade do povo, através de uma reforma social e religiosa. 

No Novo Testamento, para contar como o anjo Gabriel anunciou a Maria que ela engravidaria e seria mãe de Jesus, o evangelho de Lucas retoma quase as mesmas palavras que, séculos antes, o profeta Sofonias tinha proclamado a Jerusalém. Conforme as profecias do livro de Daniel), Gabriel seria o anjo encarregado de revelar o segredo messiânico das 70 semanas nas quais o Messias vai se manifestar. É esse anjo que fala com Maria. Conforme o evangelho, ele já havia anunciado o nascimento de João Batista ao sacerdote Zacarias. Agora ele anuncia a vinda do Messias não no templo de Jerusalém, mas em uma casa pobre de Nazaré, aldeia da Galileia. O anúncio não foi feito a um homem responsável pela descendência, chefe de família patriarcal e sim a Maria, adolescente pobre e prometida em casamento a José. 

Cheia de graça, agraciada ou graciosa” é o termo com o qual sempre nos textos bíblicos, o esposo saúda a amada com a qual quer casar. Nesse relato, Maria é a imagem do povo bíblico que recebe de Deus uma palavra nova de casamento e de gestação do ser humano novo que é o Cristo. 

Então, Maria é a imagem da comunidade messiânica, a nova Jerusalém, com a qual Deus quer refazer a aliança de amor e de bênçãos que tinha estabelecido e que o povo mesmo rompeu e abandonou. Então, Maria é figura da humanidade nova. 

É preciso reler esse evangelho, substituindo o nome de Maria pelo nome de cada um, cada uma de nós. O que o anjo nos diz é que eu e vocês, estamos todos e todas grávidos (grávidas) do Cristo, no sentido do ser humano novo. Dentro de nós temos esse humano novo que precisamos viver em nós. Como o apóstolo Paulo afirmou: “Já não sou eu que vive. É o Cristo que vive em mim”(Gl 2, 20).

Um ser humano novo ou renovado foi a proposta de Paulo na carta aos efésios e colossenses. Assim também, no século XIX, era o que Karl Marx tinha em vista ao falar de Socialismo e nos nossos tempos era a proposta de Che Guevara: ser uma pessoa nova. 

Em si, cada comunidade cristã deveria ser ensaio dessa humanidade renovada. Infelizmente, quando as Igrejas se ligam ao poder e quando colocam a lei acima das pessoas se tornam o contrário disso. Em uma sociedade dominada pelo desamor e pela consequente  indiferença em relação ao outro, a primeira revolução terá de ser a seguinte: sermos exigentes conosco mesmos (as) em relação à ética nas relações pessoais, na capacidade de conviver com as diferenças e principalmente não deixar que os adversários e inimigos nos roubem a única coisa que ninguém poderá tirar de nós: a humanidade e a capacidade de amar. 

Intolerâncias, rigidez de princípios, queimação de pessoas são coisas que sabemos existir entre pessoas, na competição do mundo e no mercado de trabalho. A luta pelo poder dentro do sistema que nos oprime nos deseduca mesmo em nossas relações na família e nos grupos aos quais pertencemos. É claro que todas as pessoas vêm com suas marcas de infância, suas feridas de educação e suas características de caráter. E aí tanto nos grupos como na caminhada da libertação, os conflitos pessoais se tornam comuns e inevitáveis. No entanto, existe modo não violento para administrar os conflitos, principalmente para nós que, nas Igrejas e nas religiões, trabalhamos por unidade e queremos formar uma frente ampla das esquerdas que querem transformar o mundo. Nesse embate, algo que ajuda é não nos sentirmos pessoas importantes. Quando aceitamos ser como crianças, nos tornamos mais capazes de reconciliação e de caminhar juntos, mesmo em meio às diferenças de sensibilidade e de mentalidade. 

Cada um, cada uma de nós tem dentro de si um berço no qual ainda resiste uma criança frágil e pura. Cada um (uma) de nós tem no mais íntimo do seu ser uma espécie de imaculada conceição, isso é, um resto de inocência (não ingenuidade) que subsiste a todas as intempéries da vida. 

Como está a nossa relação com esse núcleo profundo do nosso ser? A construção de um mundo novo de justiça ecossocial e paz precisa de que acessemos essa criança dentro de nós e possibilitemos que os outros com os quais convivemos também acessem. Na música Bola de meia, bola de gude, Milton Nascimento canta: 

“Há um menino, há um moleque 

Morando sempre no meu coração 

Toda vez que o adulto balança 

Ele vem pra me dar a mão”. 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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