Novas relações na família e no trabalho de Deus
Na Bíblia hebraica, “a vinha” é uma imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco – Cf. Is 5 e Salmo 80). Por isso, na interpretação comum das Igrejas, esta história sempre foi interpretada como se tratasse da relação entre as Igrejas cristãs e as comunidades judaicas. Os “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” seriam os judeus que foram chamados como povo eleito. Os trabalhadores da última hora seriam os cristãos, ou os não judeus, pagãos (goims). Pode ser que para a comunidade de Mateus, esse sentido tenha sido o primeiro, mas a parábola como todas, se abrem a muitos sentidos e interpretações. Parece-me que o mais importante é que o contexto vem do capítulo anterior. No texto de Mateus, a parábola começa com um porque... Isso a liga com a frase anterior que está no final do capítulo 19: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, porque... e aí Jesus conta a parábola.
Ao falar dos trabalhadores desocupados na praça, temos a impressão de que Jesus esteja falando do Brasil atual, ou de tantos países no mundo no qual a pandemia veio agravar a crise do desemprego estrutural que a revolução digital veio trazer ao mundo todo.
Nós que ainda vivemos num país no qual é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias), parece familiar o fato de Jesus descrever a realidade social da Judéia como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário. Conhecemos ainda hoje essa realidade de pessoas sem emprego, aceitando qualquer oferta que lhe façam.
O que é diferente é esse patrão que age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade. A maioria dos comentadores chamam essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha”. O nome mais indicado seria “Parábola do patrão original ou diferente”. A parábola é sobre o comportamento dele. Todo o problema para os primeiros contratados é que ele, além de começar a pagar pelos últimos, os iguala aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia. A parábola é sobre “os direitos” iguais que todos têm diante do convite de Deus e da recompensa que ele promete. De fato, pelas leis trabalhistas, o patrão não poderia fazer isso.
Pois é. Jesus subverte a lógica do sistema do mundo, tanto de sua época, como do Capitalismo de hoje. O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós”. Essa é a discussão que está por trás da parábola. Ela diz que, no reino de Deus, a economia tem de ser outra. É verdade mesmo que Deus iguala a todos e todas. No tempo de Mateus, a discussão não era sobre economia e sim sobre o fato de que Jesus igualava os judeus, herdeiros da aliança, povo eleito e os estrangeiros que só agora aceitavam a fé. O judaísmo oficial aceitava que os pagãos podem ser salvos. Ensinava que Deus oferece a todos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam. Mas, não podiam compreender uma igualdade de condições entre Israel e os pagãos. De fato, no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia, até o próprio Jesus e depois, na carta aos romanos, o apóstolo Paulo dizem claramente: “primeiramente os judeus e depois os outros”.
Na nossa parábola, Jesus inverte: “primeiro, os últimos e depois os primeiros, mas equiparados aos últimos”. No final do capítulo 19 ele tinha dito: os primeiros serão os últimos. Agora conclui a parábola dizendo: os últimos serão os primeiros. Nesta parábola, Jesus diz que Deus começa pelos últimos e dá a esses o mesmo que dá aos primeiros.
Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade, igualdade total e radical. Infelizmente, mesmo nossos grupos mais abertos e avançados ainda pensam a vida e organizam o trabalho a partir de critérios meritocráticos. Muitos cristãos falam da graça de Deus, mas no plano mais profundo, acreditam mesmo é nos méritos. Nesta compreensão de fé e da vida, não existe graça. Jesus insiste que só se pode crer em Deus como Graça e nessa parábola, fica claro. Deus dá os seus dons de graça e não pelo mérito dos operários.