XXV Domingo Comum: Mt 20, 1 - 16.
Neste XXV domingo do ano, o evangelho Mt 20, 1 – 16 nos traz outra parábola do mundo patriarcal da época. Compara Deus com o fazendeiro que sai atrás de trabalhadores diaristas para a sua fazenda. Esse conceito de Deus como uma espécie de pai de família, proprietário de tudo o que existe e senhor ao qual servimos era a visão natural que se tinha de Deus, durante séculos e que, até hoje, ainda muitas pessoas têm, seja nas Igrejas cristãs, seja em outras tradições religiosas.
Não sabemos se esta parábola foi mesmo contada tal qual pelo Jesus histórico, ou se ela se originou nos anos 80, na comunidade do evangelho de Mateus. O que podemos dizer é que Jesus quis que mudássemos nosso modo de ver Deus, a quem Ele nos revelou como Paizinho de amor maternal.
Para reler este evangelho a partir da vida e da realidade, temos de nos deter no que é o conteúdo central da parábola: Deus nos ama a todos e quer nos salvar a todos e todas. Nesse diálogo de salvação, Ele iguala os primeiros e os últimos. Iguala judeus e não judeus, religiosos e não religiosos. Trata a todos e todas de modo igual, a partir do amor gratuito que nos salva.
Na Bíblia hebraica, “a vinha” é imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco – Cf. Is 5 e Salmo 80). Por isso, na interpretação comum das Igrejas, essa história sempre foi interpretada como se tratasse da relação entre as Igrejas cristãs e as comunidades judaicas. Os “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” teriam sido os judeus que foram chamados como povo eleito. Os trabalhadores da última hora seriam os cristãos, ou os não judeus, pagãos (goims).
Pode ser que para a comunidade de Mateus, esse sentido tenha sido o primeiro, mas a parábola como todas, se abrem a muitos sentidos e interpretações. O contexto vem do capítulo anterior. No texto de Mateus, a parábola começa com um porque... Isso a liga com a frase anterior que está no final do capítulo 19: “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, porque... e aí Jesus conta a parábola. De fato, a história não parece ser sobre o fato dos últimos se tornarem os primeiros e sim que Deus iguala a todos: primeiros e últimos.
Ao falar dos trabalhadores desocupados na praça, temos a impressão de que Jesus esteja falando do mundo atual, dominado pela revolução digital que significa o fim de muitas profissões e cria uma crise de desemprego estrutural. No Brasil, ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias). Depois de tantos séculos, ainda nos parece familiar a realidade social da Judéia que o evangelho descreve como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário. Mesmo se em 1948, a ONU já declarava que toda pessoa humana tem direito a trabalho, na sociedade da informática, cada vez é maior o número das pessoas sem emprego. Muita gente aceita qualquer coisa para não ficar sem ganhar. É o que se chama a uberização do trabalho.
O papa Francisco tem insistido: Nenhuma família sem terra, nenhuma família sem teto. Nenhuma família sem trabalho.
Nesse evangelho, diante dessa realidade que marginaliza tanta gente, o que é diferente é que o tal senhor da parábola age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade. A maioria dos comentadores chamam essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha”. O nome mais apropriado seria “Parábola do patrão diferente”. A parábola é sobre o comportamento dele. Os primeiros contratados estranham, não tanto que o patrão comece a pagar pelos últimos e sim que ele os iguale aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia.
A parábola sublinha que na hora do pagamento do salário, os que trabalharam apenas uma hora ganham igual aos que conquistaram o direito de receber a diária completa. De fato, pelas leis trabalhistas, o patrão não poderia fazer isso. Jesus subverte a lógica do sistema do mundo, tanto de sua época, como do Capitalismo de hoje. O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós”. Essa é a discussão que está por trás da parábola: no reino de Deus, a economia tem de ser outra.
No tempo de Mateus, o judaísmo oficial aceitava que os pagãos podem ser salvos. Ensinava que Deus oferece a todos os seres humanos os bens da aliança. Isso, os rabinos aceitavam. Mas, não podiam compreender que entre Israel, o povo eleito e os outros (pagãos), houvesse uma igualdade de condições. De fato, no episódio da cura da filha da mulher sírio-fenícia, até o próprio Jesus e depois, na carta aos romanos, o apóstolo Paulo dizem claramente: “primeiramente os judeus e depois os outros”.
Na parábola, Jesus parece corrigir Paulo e inverte: “primeiro, os últimos e depois os primeiros, mas equiparados aos últimos”. No final do capítulo 19 ele tinha dito: os primeiros serão os últimos. Agora conclui: os últimos serão os primeiros. Deus começa pelos últimos e dá a esses o mesmo que dá aos primeiros.
Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de nos lembrar que Deus propõe igualdade, igualdade total e radical. Infelizmente, mesmo nossos grupos mais abertos e avançados ainda pensam a vida e organizam o trabalho a partir de critérios meritocráticos. Muitos cristãos falam da graça de Deus, mas no plano mais profundo, acreditam mesmo é nos méritos. Nesta compreensão de fé e da vida, não existe graça. Jesus insiste que só se pode crer em Deus como Graça e nessa parábola, fica claro. Deus dá os seus dons de graça e não pelo mérito dos operários.
Vejamos quem descobre a relação entre este evangelho e esse breve poema de Dom Helder Camara:
entre vocês, não há maior, nem menor.
Vocês se completam
São todos necessários.
O que torna o ciúme
ainda mais ridículo
entre vocês,
é que degrau serve
para subir e descer..
E qualquer um de vocês
pode ser escolhido,
pelos pobres, para descanso,
e de idílio para namorados... (Recife, 26/27.1.1973)[1]
[1] - Cf. DOM HELDER CAMARA, 97a Circular. In Circulares Ação Justiça e Paz. 26/ 27. 1. 1973. 3ª fase.