O avesso do claustro, direito do amor.
Quem quer que, por acaso ou por opção, assiste uma peça do grupo teatral Companhia do Tijolo sai dessa experiência confirmado em sua dignidade humana e impulsionado a viver o caminho do amor solidário à humanidade e a todos os seres vivos. Nos seus quase dez anos de vida, esse grupo teatral tem feito memória de grandes humanistas que consagraram a sua vida à solidariedade. Assim, já fizeram espetáculos sobre Patativa do Assaré, Paulo Freire e Frederico Garcia Loca. No entanto, é com esse novo espetáculo sobre a pessoa e a mensagem de Dom Helder Camara que o grupo revela sua maturidade comunitária ética e estética.
O espetáculo que é mais do que uma peça teatral não se
propõe a reproduzir uma biografia nem contar
linearmente a vida do arcebispo, profeta dos pobres. O grupo preferiu cruzar a
vida desse personagem com a vida de duas mulheres pobres, uma pobre que vive
sua via-crucis em São Paulo de estação em estação ferroviária
ou de metrô da cidade enlouquecida. A outra, cozinheira do Rio de Janeiro, aos
pés do Corcovado, olha o Cristo Redentor e lembra as pessoas de favela
contempladas na famosa Cruzada São Sebastião que Dom Helder fundou quando era
bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Um jornalista em busca vai ao Recife
entrevistar Dom Helder e essa entrevista se passa nos tempos em que Dom Helder
vivia e, de vez em quando, a sentimos como dirigida ao sofrido Brasil dos dias
atuais.
Não é qualquer companhia teatral que tem a capacidade de
manter a plateia envolvida em uma energia empática de participação durante mais
de três horas de espetáculo. Alguns podem estranhar o que a VEJA São Paulo
chamou de "excesso narrativo da dramaturgia". No entanto, a quebra
uma vez ou outra do ritmo das cenas e da capacidade de concisão nem chega a ser
sentida por causa da presença permanente de uma trilha sonora que além de bela
parece entrar dentro de cada pessoa e a manter ali presente e participante. As
músicas de Caíque Botkay e Jonathan Silva, assim como a direção musical do
maestro William Guedes e o brilhantismo dos atores e músicos como Flávio
Barolho e Maurício Damasceno, se constituem, em si mesmo, como arte de primeira
grandeza. Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante, diretores do espetáculo e
atores principais, confirmam a visão de Augusto Boal de que o teatro é
realmente o ensaio da vida. Não representam. Celebram e vivenciam, cada um
deles se metamorfoseando em seus personagens e os incorporando como se
estivéssemos em uma sessão de espiritualidade afrodescendente. Mas, para isso
são sustentados e apoiados pelos outros da Companhia que são todos
protagonistas em seu tempo e lugar, unindo representação teatral, interação
virtual ou fotográfica e principalmente uma refinada e altíssima sinfonia
musical com vozes maravilhosas e execuções perfeitas. Karin Menatti e Lílian de
Lima são atrizes em toda expressão da palavra e só por suas atuações mereceriam
todos os prêmios do Teatro Brasileiro.
Há duas formas de fazer memória de alguém: uma é recordar a
sua pessoa e sua vida partindo do princípio de que está morta e deve permanecer
morta. É a memória da nostalgia. A outra forma de fazer é a memória audaz e
perigosa de reviver a herança deixada pela pessoa e a fazê-la reviver através
de nós como profecia para o hoje. É esse o caminho seguido pela Companhia do
Tijolo em suas homenagens a figuras como Paulo Freire, Patativa do Assaré,
Frederico Garcia Loca e especiamente Dom Helder Camara. Especialmente, no caso
de Dom Helder, o Avesso do Claustro consegue nos fazer ver que o avesso do
claustro ou de todo o fechamento, seja institucional, seja ideológico é a
abertura à vida e a vida guiada pela amorosidade. Ao participar dessa grande
celebração ecumênica do Amor maior , saímos todos estimulados a viver a
profecia de um novo mundo possível.