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O bem viver que exige doação de vida

XII Domingo C – Lc 9, 18 – 24. 

O bem-viver que supera a boa-vida.

                     Nesse 12º domingo comum do ano (C), o evangelho proposto pelo lecionário ecumênico (Lucas 9, 18- 24) conta a cena, já muito conhecida, na qual Jesus se retira do meio da multidão e com a comunidade dos seus  discípulos e discípulas, provoca uma revisão de vida. Pergunta: Quem as pessoas dizem que eu sou? E vocês, o que dizem de mim? 

Conforme os três evangelhos – Mateus, Marcos e Lucas - que contam esse episódio, o contexto dessa história é o fato de que, em sua atuação com o povo da Galileia, Jesus percebe certo fracasso na sua missão nas cidades. Jesus não foi bem compreendido nem pelos seus discípulos e discípulas. Então, Ele resolve se retirar dali e, junto com o grupo pequeno e mais íntimo que o seguia, faz uma revisão de vida e da missão. 

Provavelmente, além de ter sentido que não era aceito pela população das cidades, Jesus se sentiu também, ele mesmo, em crise de vocação, no exercício da sua profecia.  Tinha anunciado que o reinado divino viria imediatamente. No entanto, o tempo passava e a vinda do reino tardava. Para a sua cultura, um profeta que anuncia algo e aquilo não se cumpre é sinal de que a sua palavra não tinha vindo de Deus. É como se Jesus se sentisse desautorizado pelo próprio Deus. Em outros textos vindos dessa mesma situação histórica, ele chegou a se comparar com Jonas, o profeta que anunciou uma coisa, aquilo não aconteceu e o profeta entrou em crise (Lc 11, 29- 30). Estudiosos como Jon Sobriño dizem que, historicamente, esse episódio retrata a chamada “crise galilaica” de Jesus. 

Será que, às vezes, ao ver o mundo do jeito que está e a realidade cada dia mais desafiadora, também não nos sentimos assim, marginalizados pela sociedade dominante que não nos compreende e, ao mesmo tempo, parece que anunciamos algo que não se cumpre? Pode ser consolador pensar que Jesus também enfrentou momentos de crise e até crise de vocação, ou de discernimento de caminho. 


Conforme os evangelhos, Jesus enfrentou a crise missionária e existencial ao fazer com o grupo dos discípulos e discípulas uma avaliação sobre o modo como organizava a missão. Dos evangelhos, Lucas é o único a sublinhar que, de fato, Jesus teria se retirado para orar e na oração, ele faz a avaliação com os discípulos. É no contexto da oração que Jesus propõe ao grupo essa avaliação da vida e da sua missão. O evangelho nos ensina isso: que nossa oração deve sempre inserir-se na realidade concreta da vida. Não podemos separar oração e vida concreta e social. 

 Jesus põe duas questões fundamentais: 

1ª - Quem é o Cristo para nós? Ou seja, o que significa Jesus em nossas vidas? 

2ª – Como ser discípulo ou discípula dele? 

A partir dessas questões, ele dirige ao grupo e a cada pessoa um novo chamado. 

Os discípulos confirmam que, para as multidões, Ele, Jesus seria um profeta no estilo dos antigos profetas. E Jesus pergunta: E para vocês, quem sou eu? E Pedro responde: “O Cristo de Deus.” Resposta em si correta, mas só até certo ponto. Jesus sabia que a concepção que eles tinham do Cristo (Messias) era de alguém que viria restaurar a monarquia em Israel e iria lhes associar à sua vitória. A percepção de Jesus é o contrário: ele sabia que o seu caminho seria o da Cruz. 


No começo dos anos 1970, tempo em que no Brasil vivíamos em regime de ditadura militar-civil-empresarial, um jovem manifestou a um velho militante de esquerda a decisão de colaborar no processo revolucionário. O velho militante o olhou com simpatia, mas respondeu: “Talvez você não se dê conta de que isso que você quer possa significar. A perspectiva que temos é de muita repressão, perigo de cair nas mãos da ditadura e sofrer prisão, tortura e mesmo morte. Você topa correr esse risco?”

Foi algo muito semelhante o que, naquele momento de revisão de vida, Jesus disse ao seu grupo. Proibiu que divulgassem que ele seria o Messias e os avisou de que a perspectiva não era de vitória imediata. Era de perseguição e morte na cruz, castigo que o império romano reservava aos rebeldes e subversivos. “Mas ressuscitará no terceiro dia”, complementou Jesus irradiando esperança.

Jesus anunciou que iria sofrer a cruz e avisou que quem o seguisse também deveria estar disposto a sofrer a mesma sorte. Não porque Deus quer que as pessoas sofram, mas, sim, porque o discipulado de Jesus implica no enfrentamento do mundo opressor e este não perdoa. Profetas e profetisas sabem disso. Devem fazer tudo para não morrer, como Jesus fez, até que não seja mais possível sem pôr em risco a missão. No entanto, sabem que há uma exigência do Cristo que continua atual: “renunciar a si mesmo/a, tomar a cruz de cada dia e me seguir”. 


No mundo atual, cada vez mais, a missão do evangelho pede ruptura com o individualismo dominante e com o carreirismo que a sociedade promove. A renúncia a si mesmo e tomar a cruz tomam forma não de uma ascese voluntarista e privada, mas, sim, de um treinamento para mudarmos o nosso modo de ser e de conviver. Enquanto priorizarmos no nosso eu, não seremos efetivamente testemunhas do Evangelho de Jesus Cristo. Doar a vida e priorizar posturas que geram condições de vida para os empobrecidos e injustiçados é o que revela a presença de Jesus ressuscitado no nosso meio.

Os povos originários e os movimentos sociais propõem o Bem-viver e conviver como princípio e estilo de vida. Nesse caminho, a relação de justiça e amor solidário são prioritários e nos fazem considerar sempre o bem-comum acima do bem individual. É nesse sentido a renúncia a si mesmo. Essa deve ser a nossa cruz de cada dia. Pedro Casaldáliga repetia sempre: “As minhas causas são mais importantes do que a minha vida”. 

A cada ano, há empresas que fazem balanço. Colégios fazem semanas de revisão com professores. Em um mundo complexo como o nosso, cada vez mais se torna necessário nos abrir a permanente avaliação da nossa vida e da nossa missão. Na cultura dos antigos indígenas Caeté, os Xamãs ensinavam que para alguém se tornar capaz de ser mediador/a na relação das pessoas com os espíritos precisa aprimorar a capacidade de autocrítica e aceitar profundamente as críticas que os outros lhe fazem.  

É nesse caminho da alegria franciscana, do casamento com uma pobreza que é sobriedade e ter as coisas junto com os outros/as que, precisamos retomar a oração do jeito que Jesus fazia e acolher o seu chamado para o discipulado e para a Cruz da missão transformadora deste mundo e das nossas Igrejas. Só o amor constrói, pois implica partilha e doação da vida. “Vidas pelo Reino!”, nos propõe a Irmandade dos/as mártires. 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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