Marcelo Barros
Neste 12º domingo comum do ano (C), o evangelho proposto pelo lecionário ecumênico (Lucas 9, 18- 24) conta a cena, já muito conhecida na qual Jesus se retira do meio da multidão e, em lugar mais retirado, com os discípulos e discípulas, provoca uma espécie de revisão: Quem as pessoas dizem que eu sou? E vocês, o que dizem de mim?
Conforme os
três evangelhos que contam esse episódio, em determinado momento da sua ação
com o povo da Galileia, Jesus percebe certo fracasso em sua missão de
testemunhar o reino de Deus nas aldeias. Resolve se retirar dali e, junto com o
grupo pequeno e mais íntimo que o seguia, faz uma revisão de vida e da missão.
Pode ser também
que Jesus, além de ter sentido que não era aceito pelas aldeias e cidades da
Galileia, tenha também vivido uma crise na sua vocação de profeta. Ele tinha anunciado
que o reinado divino viria imediatamente. E, de fato, o tempo passava e parece
que a vinda do reino tardava. Jesus se sentiu rejeitado pelo povo das cidades,
mas também se achou desautorizado pelo próprio Deus. Para a sua cultura um
profeta que anuncia algo e aquilo não se cumpre é sinal de que sua palavra não
veio de Deus e que ele seria um profeta falso. Jesus se sentiu assim. Em outros
textos vindos dessa mesma situação histórica, ele chegou a se comparar com
Jonas, o profeta que anunciou uma coisa, aquilo não aconteceu e o profeta
entrou em crise (Lc 11, 29- 30). Estudiosos como Jon Sobriño dizem que,
historicamente, esse episódio retrata a chamada “crise galilaica” de Jesus.
Será
que, às vezes, ao ver o mundo do jeito que está e a realidade cada dia mais
desafiadora, não nos sentimos um pouco assim, marginalizados pela sociedade
dominante que não nos compreende e, ao mesmo tempo, como se anunciássemos uma
palavra que não se cumpre? Pode ser consolador pensarmos que Jesus também
enfrentou momentos de crise e até crise de vocação, ou de discernimento de caminho.
Conforme
este evangelho de hoje, nos momentos marcantes de sua missão, Jesus leva os
discípulos e discípulas a um lugar afastado e faz com eles e elas uma revisão
de vida.
Dos
evangelhos, Lucas é o único a sublinhar que Jesus fez isso para orar. Vai aí
uma dica para nós: mesmo na crise e na dúvida, sempre tentar escutar a Deus. É
neste contexto da oração que Jesus propõe ao grupo uma espécie de avaliação ou
revisão da vida e da sua missão.
Jesus
põe duas questões fundamentais:
1ª
- Quem é o Cristo para nós? Ou seja o que significa Jesus em nossas vidas. 2ª –
Como ser discípulo ou discípula dele.
E
a partir dessas questões, ele dirige ao grupo e a cada pessoa um novo chamado.
Os
discípulos confirmam que, para as multidões, Ele, Jesus seria um profeta no
estilo dos antigos profretas. E Jesus pergunta: E para vocês, quem sou eu? E
Pedro responde: O Cristo de Deus. Pergunta em si correta, mas só até certo
ponto. Jesus sabia que a concepção que eles tinham do Messias era de alguém que
viria restaurar a monarquia em Israel e iria lhes associar à sua vitória. E a
percepção de Jesus é o contrário: ele sabia que o seu caminho seria o da Cruz.
No
começo dos anos 70 no Recife, um jovem procurou um militante de esquerda e lhe
manifestou a decisão de ser do seu grupo e colaborar no processo
revolucionário. O velho militante o olhou com simpatia e respondeu:
-
Você não sabe o que está pedindo. A perspectiva imediata que nós temos é de
muita repressão, perigo permanente de cair nas mãos da ditadura e sofrer prisão,
tortura e mesmo morte. Você topa correr esse risco?
Foi
algo muito semelhante o que, naquele momento de revisão de vida, Jesus disse ao
seu grupo. Proibiu que divulgassem que ele seria o Messias e os avisou de que a
perspectiva não era de vitória imediata. Era de perseguição e morte na cruz,
castigo que o império romano reservava aos rebeldes e subversivos.
Jesus anunciou
que iria sofrer a cruz e avisou que quem o seguisse também deveria estar
disposto a sofrer a mesma sorte. Não porque Deus queira que as pessoas sofram e
sim porque o discipulado de Jesus implica no enfrentamento do mundo opressor e
este não perdoa. Profetas e profetizas sabem disso. Devem fazer tudo para não
morrer, como Jesus fez, até que não foi mais possível sem pôr em risco a missão.
No entanto, sabem que há uma exigência do Cristo que continua atual: “renunciar
a si mesmo/a, tomar a cruz de cada dia e me seguir”. No mundo atual, cada vez
mais, a missão do evangelho pede ruptura com o individualismo dominante e o
carreirismo que a sociedade promove e que seduz tanta gente. A renúncia a si
mesmo e tomar a cruz tomam forma não de uma ascese voluntarista e privada e sim
de um treinamento para mudarmos o nosso modo de ser e de conviver.
Os povos
originários e movimentos sociais propõem o Bem-viver como princípio e estilo de
vida. Neste caminho, a relação de justiça e amor solidário são prioritários e
nos fazem sempre considerar sempre o bem-comum acima do bem individual. É nesse
sentido a renúncia a si mesmo. Essa deve ser a nossa cruz de cada dia. É neste
sentido que Pedro Casaldáliga repetia sempre: “As minhas causas são mais
importantes do que a minha vida”. É neste caminho da alegria franciscana, do
casamento com uma pobreza que é sobriedade e ter as coisas junto com os
outros/as que, precisamos retomar a oração do jeito que Jesus fazia e acolher o
seu chamado para o discipulado e para a Cruz da missão transformadora deste
mundo e das nossas Igrejas.