O Carnaval e a alegria do Espírito
Já nos anos 50, Dorival Caymmi resumia o sentimento popular
ao cantar: "Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça,
ou doente do pé...".
Os grupos religiosos
que pregam contra o Carnaval e os que inventam encontros espirituais para
afastar as pessoas das brincadeiras de Momo podem usar como pretextos o medo do
pecado e os problemas como desordem moral, bebedeiras e drogas que, realmente,
existem em todos os eventos de massa, como shows e manifestações coletivas. No
entanto, essas pessoas já eram contrárias aos festejos desses dias, mesmo em
épocas nas quais o Carnaval era mais espontâneo e inocente. O que está por trás
dessa rejeição moralista é o pensamento neoplatônico que opõe corpo e espírito.
Essa filosofia pagã incorporou-se de tal modo no Cristianismo que as pessoas
esquecem que, segundo o quarto evangelho, Jesus começa a dar sinais de sua
missão em uma grande festa de casamento em Caná da Galileia e chega a
transformar água em vinho para que a alegria dos convidados pudesse ser
completa (Cf. Jo 2, 1- 11). Diversas vezes, nos evangelhos, Jesus diz que veio
para que todos tenham alegria e vida profundamente vivida (Jo 10, 10). Ele se
queixa de sua geração que parece com pessoas que, mesmo ao som da música e da
dança, ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32).
Nos anos 70, na semana antes do Carnaval, em uma crônica
radiofônica, dom Helder Camara, então arcebispo de Olinda e Recife, afirmava: "Carnaval é a alegria popular. Direi
mesmo, uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida.
Peca-se muito no carnaval? Não sei o que pesa mais diante de Deus: se excessos,
aqui e ali, cometidos por foliões, ou farisaísmo e falta de caridade por parte
de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval. (...) Brinque
meu povo querido! Minha gente queridíssima. É verdade que quarta-feira a luta
recomeça. Mas, ao menos, se pôs um pouco de sonho na realidade dura da
vida!" ("Um olhar sobre a cidade", 01/ 02/ 1975).
Naqueles tempos, Chico
Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”, uma comédia
musical de Cacá Diegues que tomava o Carnaval como parábola da festa da
libertação. Chico, Nara Leão, Maria Bethânia e Gal saíam pelas ruas cantando:
"Quem me vê assim, parado e distante, até parece que nem sei sambar. Tou
me guardando pra quando o Carnaval chegar". Tratava-se do Carnaval da
libertação da ditadura militar e das opressões que vinham daquela estrutura
autoritária de injustiças.
Atualmente,
o império não mais precisa dos militares para garantir, em toda a América
Latina, governos ilegítimos e uma forte ditadura econômica, disfarçada sob as
aparências de democracia formal. Por isso, a organização do povo nos blocos de
Carnaval, a capacidade de coordenar multidões sob o som de uma marcha ou de um
frevo de rua manifesta a capacidade do nosso povo de se organizar social e
politicamente. superar os preconceitos e mentiras, diariamente jogados por
meios de comunicação inescrupulosos e vendidos ao império. O Carnaval pode ser
sim uma parábola e instrumento para superarmos as ondas de ódio e intolerância
propostas pela mídia dominante e lutarmos pacificamente por maior igualdade
social e por uma justiça que signifique verdadeira libertação para todo o povo.
Com outras letras e outras melodias, em ritmos mais novos, continuamos a cantar
o correspondente à velha música do Chico: “Quem vê assim, tão parado e distante, parece que eu
nem sei sambar. Tou me guardando pra quando o Carnaval chegar”.