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O cego de nascença somos todos nós

4º Domingo da Quaresma – Jo 9, 1-41

É preciso recriar o humano

           Em um romance, José Saramago escreve o seu “Ensaio sobre a Cegueira”.  Em suas páginas, um motorista parado no sinal de trânsito, de repente e sem saber como nem porque, descobre que está cego. É apenas o primeiro caso de uma imensa "treva branca"" que logo se espalha incontrolavelmente por toda a cidade. Resguardadas como na quarentena contra a pandemia, as pessoas cegas se perceberão reduzidas à essência humana e obrigadas a empreender uma verdadeira viagem às trevas. Com essa parábola, o romancista nos chama a atenção para “a responsabilidade de ver o que os outros não podem ver”, ou seja, recuperar a lucidez sobre a vida, resgatar o afeto como fundamento das relações humanas e o cuidado como princípio de vida em comum. 

Em diversas religiões antigas, a meta da espiritualidade sempre foi adquirir uma nova visão de si mesmo/a, da vida e do mundo. No Budismo, Buda significa o Iluminado e atingir o estado de Buda é a iluminação interior. Na América Latina, os povos originários cultivam como espiritualidade a capacidade de ver coisas que comumente as pessoas não veem. Vários povos indígenas usam bebidas de poder para obter o que na religião do Santo Daime se chama “a miração”, um estado de consciência alterado que nos faz penetrar mais profundamente no mistério. 

Nas Igrejas históricas, neste 4º domingo da Quaresma, lemos como texto evangélico João 9, 1 – 41. Conta que, em Jerusalém, durante a festa das tendas, ao sair do templo, Jesus cura um cego de nascença, (Jo 9).

Ao narrar essa cena, o quarto evangelho parece querer sustentar uma comunidade de discípulos e discípulas que, pelo batismo, passa da cegueira à luz da visão nova da fé. No Cristianismo antigo, o Batismo era chamado "sacramento da iluminação". Por isso, o evangelho da cura do cego era um texto batismal e foi escolhido como o segundo dos três textos evangélicos que a tradição litúrgica lê no processo do catecumenato.  

              Este evangelho é marcado pela polêmica com o templo. Começa afirmando que, só à medida que Jesus deixa o templo, vê a pessoa cega do lado de fora da porta.  Do modo como estava organizado o templo e, podemos dizer, como até hoje, o sistema religioso se organiza,  não permite ver o mundo dos pobres. Só quando sai do santuário, Jesus vê  o pobre cego. O texto usa o termo genérico anthropos, o humano. É como se dissesse: Ao sair do plano religioso, Jesus passou e viu que o ser humano estava cego. 

Nos oito dias da festa, havia uma cerimônia na qual, cada noite, se acendiam os grandes candelabros do templo, como sinal da iluminação do mundo e recriação da vida. No capítulo anterior, (Jo 8, 12), Jesus havia afirmado: Eu sou a luz do mundo! (A luz do mundo não é o candelabro do templo). Jesus é a luz da humanidade. Não está preso a nenhuma cultura ou nenhuma religião. Ele é a luz e quer curar a cegueira de toda a humanidade. 

              Como a festa atraía muita gente, o cego pobre mendigava em uma porta do tempo. Os discípulos se revelam ainda prisioneiros da cultura religiosa tradicional. Ao verem o cego, a preocupação deles era saber quem tinha pecado, se o próprio cego ou seus pais - para que ele nascesse cego. Jesus não quer saber quem pecou ou quem não pecou. Não aceita uma mentalidade religiosa, que procura culpar quem já é vítima. Claro que a saúde física depende muito da saúde psíquica e interior. Há profunda relação entre saúde e salvação. Mas, Jesus rejeita a relação entre doença e culpa, como se a pessoa doente fosse culpada por ser doente. 

A sua única preocupação é curar as pessoas e trazer vida, saúde e alegria. E o modo como ele cura, desrespeita a lei religiosa. Era o dia de sábado, no qual é proibido trabalhar. Jesus diz que, quando se trata de dar saúde e luz às pessoas e ao universo, o Pai trabalha sempre e ele, Jesus age junto com o Pai. Ao falar assim, ele faz o gesto para acompanhar a palavra. E o gesto é o mesmo de Deus ao criar o homem da lama da terra. Jesus faz lodo com a saliva e passa nos olhos do cego. 

Jesus não obedece à lei, antes de tudo por atuar no dia do sábado. Além disso, ao tocar na saliva, faz uma coisa que a lei proíbe. Como todos os fluidos do corpo, a saliva era considerada impura (Ver Lv 15, 8). Jesus cospe na terra, faz lama com a saliva e passa nos olhos do cego. De certa forma, ao fazer lama na terra, retoma o gesto que o livro do Gênesis descreve como o de Deus na criação do ser humano. Muitas tradições religiosas concordam que o ser humano é feito do humus da mãe Terra.  

Até hoje, existem rituais xamânicos que usam como remédio a saliva com suas propriedades curativas. Agora, ao refazer o gesto divino da criação com o cego, Jesus diz que recriar o ser humano é possibilitar uma nova luz para todos. Nós participamos desse novo ato criador à medida que levamos luz em torno de nós e para o mundo. A nova proposta de Jesus para a nossa relação com Deus é passar de uma religião estática e tradicional, feita de leis, ritos e sacrifícios, para uma fé nova. O que Jesus propõe é a relação íntima com Deus, inserida na comunidade e de forma laical. Ele abre nossos olhos para nos fazer ver as coisas de forma nova e, assim, nos envia ao mundo. Não se contenta apenas em curar. Cura e envia ao mundo. 

Nessa história, a cura se dá quando o homem se lava na piscina que se chamava Siloé. O evangelho faz um jogo de palavra com o nome da piscina Siloé (enviado) e diz que foi se lavando nas águas que representam Jesus (o enviado) que o ser humano recebe a vida nova e passa a agir no mundo com nova missão. Os cristãos sempre entenderam essas águas de Jesus como sendo as águas do batismo. Por isso, esse evangelho é lido na preparação da Páscoa e do catecumenato. No entanto, existe alguma água no mundo que não seja água enviada por Deus? Água que é sinal – sacramento do amor divino pela humanidade?

Atualmente, o mundo vive uma grave crise hídrica. A ONU comemora o 22 de março como Dia mundial de proteção e cuidado com a água. Os movimentos sociais e comunidades lutam para que a água seja reconhecida como bem comum da humanidade e direito de todo ser vivo. Portanto, a água não deve ser privatizada e mercantilizada. Não deve ser objeto de conflitos e motivos de guerra entre povos. Todas as tradições espirituais reconhecem a água como sacramento do amor divino. 

De fato, o evangelho de hoje traz a descrição do processo conflitivo que aconteceu entre a religião oficial e o ser humano que, através das águas, recebeu de Jesus a luz de uma vida nova e da missão. O ser humano, antes cego, não tinha responsabilidade nenhuma. À medida que passa a ver,  tem de assumir responsabilidade. Entra em conflito com a sinagoga e acaba expulso da religião. De um lado, há um processo evolutivo na sua fé. Primeiramente, fala de Jesus como “um homem chamado Jesus”. Depois, como os religiosos rejeitam Jesus, sustenta que ele é um profeta, é alguém de Deus e finalmente o reconhece como "Filho do Homem", ou seja, o enviado de Deus à humanidade. Este processo de iluminação e descoberta é o mesmo de toda pessoa batizada no reconhecimento progressivo de quem é Jesus. O evangelho diz que os clérigos da religião ritual vivem o processo oposto: interrogam os pais do antigo cego, depois o próprio homem curado e acabam expulsando-o da sinagoga. Provavelmente, é uma alusão ao fato de que, a partir dos anos 80 do primeiro século, os/as cristãos/ãs foram excomungados da sinagoga judaica, ou romperam com ela. 

Para nós, o conflito não é entre fé cristã e Judaísmo e sim entre toda forma de religião que defende as tradições e se preocupa pouco com a vida das pessoas. Hoje, quantos conflitos morais e quanta insensibilidade continuamos a ver entre os que defendem tradições religiosas e os que querem ser livres e se sentem com o direito de agir no mundo. O evangelho de hoje nos questiona sobre de que lado estamos nós e nos provoca a nos colocar sempre a favor da vida e da liberdade. 

Neste ano, a Campanha da Fraternidade nos diz que nos colocar do lado de Jesus e da Páscoa supõe nossa solidariedade com toda pessoa que sofre de insegurança alimentar e mais ainda que participemos de uma Política social que lute contra as causas da fome e das desigualdades sociais em nosso país. Esse é o lado de Jesus. Essa é a sua Páscoa.    

                                    

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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