Cristianismo da profecia e bancada da Bíblia
Neste ano, este XXVI domingo comum coincide com o Dia da Bíblia, que a Igreja Católica celebra no último domingo de setembro. No evangelho de Mateus, 21, 28- 32, a parábola que Jesus conta sobre os comportamentos opostos dos dois filhos parece ter sido propositalmente escolhida para este dia e a realidade atual que vivemos. Jesus pode ter se inspirado em um fato ocorrido na sociedade em que vivia. De todo modo, em uma família patriarcal antiga, é inacreditável que um filho possa dizer ao pai que não executaria um mandato seu. Seria gravíssimo. Significava se excluir totalmente das relações sociais. Menos ainda seria viável que ao ser perguntado sobre aquele filho petulante, alguém pudesse de alguma forma desculpá-lo. Entretanto, a provocação que Jesus faz aos sacerdotes é dentro da lógica dos seus oponentes. Ele não entre no mérito se um filho tem ou não direito de dizer ao pai que não quer ir trabalhar em sua vinha. A pergunta de Jesus é simplesmente quem fez a vontade do Pai e quem não fez. A oposição de Jesus é entre um filho que disse que faria e não fez e um outro que se negou, mas depois acabou obedecendo. Ele pergunta quem mais agradou ao pai. Os sacerdotes tiveram de admitir que o filho que obedeceu ao Pai não foi o que disse: Sim, Senhor, mas foi o que disse Não e depois obedeceu. Nessa parábola, Jesus retoma o que tinha dito no Sermão da Montanha: “Não é quem diz Senhor, Senhor que entra no projeto divino do reino, mas quem pratica a vontade de Deus” (7, 21).
Uma leitura mais profunda e atual do evangelho nos leva antes de tudo a não aceitar mais a comparação de Deus com um pai de família patriarcal que impõe suas ordens. Até hoje essas imagens de Deus como Senhor, patrão, rei todo-poderoso ainda é tão comum em todas as religiões e mesmo em nossa Igreja. Jesus se inseriu na cultura da época, mas em cada parábola, ao menos, ele apresenta Deus como um pai patrão que age diferente do que seria o comum. De fato, nesse evangelho, o pai não reage ao filho que se negou a cumprir o que ele mandou. No entanto, diferentemente de outras, nesta parábola, Jesus não quis falar de Deus e sim sobre os comportamentos diferentes dos dois filhos. Comumente, em uma família patriarcal, os filhos dizem Sim ao pai e obedecem. Não existe essa alternativa de dizer Sim e não fazer e dizer Não e no final acabar fazendo.
Jesus sabe disso, mas quer falar da nossa relação com Deus e vai direto ao ponto. Denuncia que, por detrás de toda postura religiosa há sempre certa hipocrisia. Ao se basear na lei, a religião provoca sempre certa incoerência entre o dizer e o fazer. Na carta aos romanos, Paulo diz: “Denunciamos que todos, judeus e gregos, estão sob o domínio do pecado” (Rm 3, 9). E cita o salmo 53: “Não há ninguém justo. Todos se desviaram”. Esta é a denúncia de Jesus para os religiosos de ontem e de hoje: Deixem de fingimento! A realidade das Igrejas e das religiões é a da parábola: um filho que diz Sim, Senhor, mas não faz a vontade do Pai, enquanto os que dizem Não, de alguma forma, acabam fazendo o que o Pai manda.
De fato, atualmente, Deus está do lado de quem? No Congresso, os deputados da bancada da Bíblia ao usarem o nome de Deus e da Bíblia são filhos e filhas que dizem Sim, mas, em nome de Deus, se posicionam pelas piores causas da humanidade. Nas Igrejas, não são poucos os bispos, padres e pastores que dizem Sim à Bíblia para ostentar poder e dizem defender a Vida com posturas dogmáticas, autoritárias e intolerantes. Enquanto isso, muitos/as, sem se referir a Deus, colaboram para realizar no mundo o seu projeto de uma terra de paz e justiça eco-social, a partir dos mais pobres e vulneráveis. Por isso, compreendemos que Jesus conclua a história, dizendo aos religiosos: “Os publicanos (pecadores) e as prostitutas chegarão antes de vocês no reino dos céus” (v. 31).
O evangelho acentua que os dois filhos têm o mesmo pai e esse dirige aos dois o mesmo apelo. Isso é muito ecumênico, mesmo se até hoje, a maioria dos cleros e hierarquias religiosas não compreendem. Não aceitam que os dois filhos recebam o mesmo chamado do Pai: vão trabalhar na minha vinha. Muitos padres, pastores e religiosos pensam que existe uma vinha que seria a política e a organização da sociedade. Esta é profana e não é de Deus. A vinha do Pai seria a religião: as dioceses, paróquias e congregações.
O evangelho de hoje nos provoca a redescobrir que existe uma única vinha de Deus. É o mundo. E tanto a sociedade civil, como as Igrejas e religiões têm a mesma e única tarefa: testemunhar e colaborar para a implantação do projeto divino no mundo. E este projeto não é a religião. O papa Francisco tenta ajudar a que os católicos entendam isso. O filho que diz Sim pensa que ao dizer Sim já fez tudo. Os não religiosos dos fóruns e de movimentos sociais não dizem Sim a Deus, mas buscam unir a humanidade. Agora, o papa vem aí com nova encíclica e o título já diz: Tutti fratelli. Somos todos irmãos e irmãs. Sem diferenças.
Até aqui o trabalho por um novo mundo possível tem contado pouco com a maioria dos/das religiosos/as. Eles parecem mais ocupados com os seus próprios interesses. A vinha é deles. Hoje, a voz que está mandando os filhos e filhas à lavoura de Deus, isso é, à construção de uma nova forma de organizar o mundo não é mais o pai patriarcal. É a voz da mãe Terra que queima na Amazônia e no Pantanal. É a voz da vida de quase 140 mil irmãos e irmãs que morrem nesta pandemia. Muitos deles/as são vítimas do descuido proposital do governo e da sociedade dominante com as populações vulneráveis. O vírus que mais mata é o da sociedade escravagista, com a qual nossas Igrejas continuam a conviver e até a sustentar à medida que impedem a comunhão daqueles aos quais Jesus se referiu quando falou de “pecadores e prostitutas”, mas dá a comunhão aos senhores das armas e do ódio.