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O desfile da Mangueira como ensaio da Páscoa

O desfile da Mangueira, anúncio leigo da Páscoa

                Em princípio, Carnaval e Páscoa nada têm em comum. O Carnaval é uma festa civil e a Páscoa, uma festa religiosa da tradição judaico-cristã. No entanto, a Páscoa tem sua origem em danças da primavera (em hebraico, Páscoa significa passos). Era uma festa ao mesmo tempo cívica e religiosa. De fato, nas sociedades antigas não se fazia a separação entre sagrado e profano. A política, a medicina e a arte eram ao mesmo tempo consideradas como sagradas e sempre foram além da religião. Nesse tipo de sociedade, a Páscoa era como um Carnaval no qual tribos do Oriente Médio festejavam a primeira lua cheia da primavera. 

Também a tradição atual do nosso Carnaval tem sua origem ligada à tradição religiosa cristã. Os dias da folia eram dados como concessão ao povo para brincar e comer carne, antes de iniciar o jejum e as penitências da Quaresma.

Na sociedade moderna, o processo de secularização separou os dois eventos e Carnaval passou a ser visto por religiosos tradicionais como não apenas separado mas até contrário à religião. Assim, nada mais estranho do que uma escola de samba escolher como tema do seu samba-enredo uma palavra do Evangelho: A verdade vos fará livres. Pior ainda quando toma como tema de todo o desfile mostrar que Jesus é da gente e principalmente dos excluídos. Alguns críticos resmungaram nos microfones: Carnaval é festa do povo. Política e religião não deveriam entrar.  

Religiosos tradicionalistas protestam: levam o Cristo para ambientes profanos. Como se o evangelho nunca tivesse dito: O Verbo divino se fez carne. E ao se fazer carne, como bem escreveu Dom Pedro Casaldáliga: se fez índio, se fez negro, menino de rua e marginalizado. Pois, foi exatamente esse Jesus, acusado de comer com pecadores e com gente de má vida, que foi retratado nesse Carnaval pela Mangueira. Mesmo pressionada e ameaçada até de ser processada judicialmente, a Mangueira resistiu e fez o seu desfile para mostrar o Jesus da gente no rosto dos jovens negros assassinados diariamente nos morros cariocas, no rosto das mulheres oprimidas e de todo um povo crucificado. Aos que querem separar política, religião e festa do povo, a escola responde: Não se deve misturar Carnaval com política partidária e propaganda de governo, mas, Política como serviço ao bem comum é assunto do povo e o Carnaval não pode ser alienado disso. Do mesmo modo, religião como catequese e doutrinação não deve entrar, mas uma mensagem humanizadora da fé universal é sempre bem-vinda e, cada dia, mais necessária. E a figura de Jesus vai muito além dos muros das Igrejas e quer estar inserido onde o povo está. O apóstolo Paulo, na carta aos filipenses escreveu: “É verdade que alguns pregam Cristo por inveja e rivalidade, mas outros o fazem por boa intenção. (...). Mas, que importa? De qualquer maneira com segundas intenções ou com sinceridade, Cristo está sendo anunciado e com isso me alegro” (Filipenses 1, 15. 18). 

 Em 1964, aos 19 anos, eu começava meu itinerário de monge no mosteiro beneditino de Olinda. Na segunda-feira de Carnaval, me dizem: Lá na rua em frente à prefeitura está passando o bloco carnavalesco A Pitombeira dos Quatro Cantos. Sem pedir permissão a ninguém, abri a porta e fui ver o carnaval de rua. Surpreendi-me com a beleza das fantasias, a orquestra de frevo e a euforia da multidão que acompanhava o bloco. Eu estava assim meio extasiado, quando ao meu lado aparece Eduardo Hoornaert, padre que Dom Helder Camara trouxe da Bélgica para ensinar teologia no Recife. Ele também estava encantado. De repente, me faz o seguinte comentário:  - Sonho com o dia em que a Vigília Pascal que nós celebramos possa ser uma festa como essa. Pareça um desfile de Carnaval assim. 

Escutei aquela opinião, mas dentro de mim, discordei. Para mim, uma coisa nada tinha a ver com a outra. E, mesmo já aberto a um Cristianismo social e inserido no meio do povo, eu preferia uma Vigília Pascal orante e com os ritos tradicionais e as leituras bíblicas que iluminavam a noite santa com o anúncio da Páscoa de Jesus. 

A recordação daquela palavra de Eduardo Hoornaert, até hoje querido amigo, me veio nessa noite de domingo de Carnaval ao fazer parte da comissão de religiosos que abriu o desfile da Mangueira no Rio de Janeiro. Nunca havia visto de perto e menos ainda participado de dentro do desfile de uma escola de samba imensa como essa (4 mil participantes na avenida, 19 alas, cinco carros alegóricos e três tripés).

O próprio fato de estar em meio a pessoas todas vestidas a rigor ou fantasiadas e em clima de festa cria um ambiente mágico e extraordinário. Aí sim me lembrei das palavras de Eduardo e desejei que um dia a Páscoa se pudesse tornar uma profecia de liberdade e alegria universal, para além do culto e da cultura apenas da Igreja. De fato, a tradição judaica chama a Páscoa, a festa da nossa liberdade. E se um dia, o mundo inteiro puder chamar assim? 

Não sou ingênuo e sei as ambiguidades da atual organização do Carnaval. E faço a distinção entre festa e espetáculo. A festa é o evento no qual todos participam ativamente e o espetáculo é para ser visto. O Carnaval tem a dimensão de festa para os integrantes das escolas, mas é espetáculo para os que estão nas arquibancadas do samba.  Também fica sempre a pergunta sobre a dimensão orante da Páscoa. Antigamente eu não fazia a distinção entre uma fé sapiencial e uma fé profética. No culto tradicional, eu louvava a Deus e queria falar com ele como se ele precisasse da minha louvação. Na fé profética, me deixo tomar por ele e quero que a palavra dele ressoe para o mundo. E aí sim, esse desfile da Mangueira me fez sim pensar em uma celebração pascal que integrasse a diversidade religiosa, celebrasse a presença divina do Espírito recriando e renovando o universo e profetizasse a Páscoa de Jesus, assim como as de tantos outros profetas e profetizas do Amor Divino, nas mortes e ressurreições nossas de cada dia. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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