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O doutorado da fé que nós perdemos

O doutorado da fé que nós perdemos

(7a Circular desta quarentena) 

Recife, 03 de julho de 2020

                “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11, 25). 

                   Queridos irmãos e irmãs,

Começo esta carta circular como o apóstolo iniciava algumas de suas cartas desejando a graça e a paz de Deus (a aliança do amor divino) para as comunidades às quais escrevia. Sem querer me comparar com Paulo, neste dia da memória do apóstolo Tomé, me sinto escrevendo como ele não de uma prisão do império, mas de uma situação de quarentena que já deveria receber outro nome, já que daqui a pouco completarei quatro meses de isolamento social obrigatório. Diante do que sei de amigos/as e pelo noticiário ao qual tenho acesso, não me parece justo reclamar nada. Ainda me sinto privilegiado. Mesmo se, a cada dia, as forças físicas e psíquicas parecem ir se esvaindo, ainda descubro no vaso de barro do meu ser o tesouro da palavra divina que, de fato, faz com que, em minha fragilidade imensa se revele sempre a força de Deus. 

Como muitos/as de vocês, a cada dia e em algumas noites da semana, tenho participado de videoconferências, lives e gravações de programas. Concordo que as reuniões virtuais cansam mais do que os encontros presenciais. No entanto, não imagino como seria este tempo de quarentena e isolamento, se não pudéssemos contar com estes recursos da internet. No que diz respeito às Igrejas, tal qual ocorre na sociedade, não tenho a impressão de que este tempo de diáspora provocado pela pandemia tenha provocado alguma mudança no atual modelo clerical de organização das paróquias e das celebrações. 

Tenho meditado neste evangelho que leremos depois de amanhã (XIV domingo) Mateus 11, 25- 30. Jesus acaba de viver o fracasso em sua missão nas cidades da margem do lado de Genesaré e no lugar de ficar deprimido faz uma oração de louvor ao Pai. Tinha acabado de descobrir que o reino era acolhido pelos pequenos, mas era sistematicamente rejeitado pelos grandes e entendidos. Não sei se ainda hoje estou convencido que este fato é graça de Deus (Jesus ora: assim foi ou é do teu agrado). Como eu ainda espero dos grandes e das cúpulas soluções e percepções que só poderão vir dos pequenos. Mas, que pequenos? Quais? A massa enorme de gente de periferia que ainda aprova o atual desgoverno brasileiro? O pessoal pobre que continua nas ruas e no comércio como se nada tivesse mudado? É a estes pequeninos que Deus revela os seus segredos? E quem são hoje os grandes aos quais Ele esconde? 

Sobre isso, tenho medo de dar respostas dogmáticas ou excludentes. Quero meditar mais, orar mais. Minha inclinação é fazer como o evangelho de Mateus que corrigiu Lucas. Este tinha feito Jesus dizer: Bem-aventurados vocês que são pobres (6, 22). Mateus corrigiu: pobres que assumem sua condição de pobres, ou seja, pobres no espírito (5, 3). Então também nesta oração de Jesus eu veria como os pequeninos aos quais Deus revela os seus segredos, não toda e qualquer pessoa pobre, mas os pobres que se assumem como pobres e se colocam do lado da luta contra a pobreza injusta. Mas, não sei as fronteiras disso e desconfio que o mistério aí é maior e não adianta eu querer racionalizar. 

O que me toca hoje é retomar o ensinamento dos antigos pais e mães da nossa fé. Diziam que a Igreja tem três magistérios ou três ministérios de ensino da palavra de Deus: o primeiro magistério é dos pastores. O segundo magistério é dos profetas (hoje dizemos teólogos/as e assessores/as). O terceiro magistério ou doutorado da fé é o que vem das pessoas e comunidades empobrecidas. 

Pessoalmente, não tenho tido dificuldade de valorizar e acolher esta profecia vinda dos/das pobres inseridos/as nos movimentos sociais do campo e da cidade, na caminhada dos povos indígenas, quilombolas, assim como nas lutas pela dignidade das minorias sexuais. Nenhuma dificuldade de me colocar deste lado e acolher deles e delas a palavra divina da Vida. Da massa de empobrecidos do mundo, valorizo a dignidade humana das pessoas, sinto a empatia imediata que me faz solidário com a realidade dura do dia a dia. Mas, ainda fica apenas nisso e preciso me converter.

No ponto de vista da Teologia, junto com os queridos irmãos e irmãs que me ajudam na Secretaria Ecumênica, estou preparando um curso sobre Teologias da Libertação para os nossos diasque, a partir da 4ª feira, 15 de julho, será dado cada quarta-feira às 19 horas no canal Paz e Bem da TV 247 e por um canal do You tube. O curso será promovido pela Secretaria Ecumênica, pelo Espaço Senso e poderá ser curso de extensão de teologia pela Universidade Católica de Brasília. Ao mesmo tempo, começo a reelaborar uma Teologia afro da Libertação. A partir de um livro escrito há dez anos (O sabor da festa que renasce), o desafio é ampliar o debate em uma linha de eco-teologia decolonial e que ponha em diálogo a Teologia Negra (cristã) e a Teologia afrodescendente (das religiões e tradições espirituais afrodescendentes). Em novembro, quero que este seja o presente de amor que posso dar a meus irmãos e irmãs nesta caminhada de recuperação do ministério dos/das pobres nas Igrejas e no mundo. A recuperação do doutorado da fé (a cátedra dos/das pobres) que nós perdemos. 

Deus abençoe e fique com cada um/uma de vocês.  Abraço do irmão Marcelo   

 

 

  

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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