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O fogo na madrugada da vida

3º Domingo da Páscoa C – Jo 21, 1 – 19. 

A teimosia do fogo nas madrugadas escuras

(O evangelho de João 21 à luz da nossa realidade atual)

 

Neste 3º Domingo da Páscoa, no ano C, o evangelho proposto é João 21, 1 – 19. 

Quem olha a realidade a partir da fé não pode deixar de pensar que estamos em tempos nos quais o poder do mal parece tomar conta de tudo. Por mais que tentemos reagir, não há como negar que temos contra nós um sistema de poder opressivo. Em busca de segurança, mesmo parte do povo pobre entra na onda provocada pela direita raivosa. Até nas Igrejas, que deveriam ser testemunhas fieis do reino de Deus, não poucos ministros e fieis se agarram ao poder mundano e à publicidade enganosa. 

A partir dessa realidade, podemos meditar o capítulo 21 de João. Provavelmente se trata de um acréscimo posterior feito ao conjunto do texto evangélico redigido pelas Comunidades do Discípulo Amado. Em todos os outros capítulos, o quarto evangelho revela comunidades nas quais, em geral, todos/as são discípulos e discípulas. Em todos os vinte capítulos do 4º Evangelho,  não aparece nenhuma hierarquia. Não há ministérios próprios de alguém. Toda comunidade é ministerial. Todos e todas são discípulos e discípulas. Na segunda parte do evangelho, essa comunidade é representada na figura do que o texto chama “o discípulo amado”. As Comunidades do Discípulo Amado têm como eixo o amor, a solidariedade e a fraternidade. Por testemunhar isto em comunidade as pessoas se tornam verdadeiras discípulas de Jesus Cristo. 

Na época em que o quarto evangelho foi escrito, as comunidades ligadas aos evangelhos sinóticos e ao apóstolo Paulo já tinham apóstolos e ministérios, de alguma forma, organizados. Provavelmente, o capítulo 21 de João foi acrescentado bem mais tarde, em uma época, na qual as Comunidades do Discípulo Amado teveram de enfrentar a questão dos ministérios na comunidade. 

Esse capítulo 21 tem a Pedro como protagonista principal, figura chave e simbólica desse modelo de Igreja, centrado nos ministérios de coordenação, diferente do primeiro modelo das comunidades, no qual os ministérios não se distinguiam do discipulado comum. É verdade que, nesse evangelho, a figura de Pedro ainda aparece como contraditória e até digna de críticas. A primeira observação a se fazer ao texto é que do grupo dos discípulos citados nessa cena da pesca no lago da Galileia, cinco tem seus nomes citados. São exatamente, aqueles que, do grupo todo, são os mais críticos ao projeto de Jesus. São exatamente aqueles que mais duvidaram de Jesus e do seu projeto. 

Na noite da prisão de Jesus, Pedro negou três vezes que o conhecia e jurou que não pertencia ao grupo. Tomé o criticou claramente por ele, Jesus, querer ir a Jerusalém e só o acompanhou a contragosto. Tiago e João, filhos de Zebedeu, tinham como apelido: filhos do Trovão, isso é, da violência. Pedro conduz os discípulos a uma pesca que o evangelho diz claramente que é um fracasso. Deixa claro que, quando Pedro reconhece Jesus na beira do lado, sente que está nu, põe a túnica e se joga n’água. Se quisermos ler isso como crítica à hierarquia, o evangelho diz que os apóstolos fracassaram na sua missão e que Pedro se sentiu nu e teve de se enrolar em alguma roupa para pular no mar ao encontro de Jesus. 

Neste ano de 2025, esse evangelho está sendo proclamado exatamente nesses dias em que os cardeais estão reunidos em Roma conversando sobre a realidade do mundo e da Igreja Católica para a partir daí escolher o futuro Papa. Que o Espírito os ilumine para perceberem que, apesar de toda a luz trazida pelo querido Papa Francisco, a noite domina o ambiente eclesial e social em todos os continentes. Mesmo em meio a todo o cerimonial medieval desses dias, abertamente contrastante com o desejo de Francisco e apesar de toda a pompa que cercam essas celebrações no Vaticano, o evangelho pergunta: será que toda essa pompa e esse cerimonial sofisticadíssimo não esconde que, por trás de tudo, há uma nudez que só seria coberta, justamente se alguém cometer a loucura de se jogar nas águas ao encontro do Ressuscitado?

 

O relato da pesca fracassada durante a noite revela que toda vez que um ministro toma iniciativa na missão, como se tivesse autoridade própria, sem se dar conta de que depende totalmente de Jesus,  não somente a missão fracassa, como a pessoa se revela nu, isso é: impotente. O próprio Jesus tinha dito na ceia: “Sem mim, nada podereis fazer”. Quantas vezes, a Igreja, a nossa Igreja, parece querer caminhar independentemente. Organiza uma autoridade baseada na assistência que Jesus teria prometido. No entanto, em alguns momentos da história, parece que Jesus perde o controle desse caminho eclesial. De certa forma, já vimos essa queixa de Jesus no episódio do lava-pés, quando o evangelho evita contar a instituição da ceia e prefere insistir no seu significado: o lava-pés. Ali, Jesus diz a Pedro: “Se não aceitas que te lave os pés, não terás parte comigo”. Agora, de novo, depois da pesca que finalmente pescou tantos peixes, Jesus ceia com os discípulos, mas o evangelho nos deixa com essas palavras misteriosas: “Ninguém perguntava quem era, porque todos sabiam que era o Senhor”.  Ninguém é dono de Jesus. Ninguém pode ter certeza de saber quem e como ele se apresenta. Sua presença permanece oferecida a nós, mas ao mesmo tempo, devemos estar abertos a uma busca que é permanente e nunca totalmente satisfeita. 


A segunda parte do relato desse evangelho nos conta que depois de cear, Jesus pergunta a Pedro: tu me amas? Pedro responde: Eu gosto de você. Jesus insiste em perguntar: Gosta mesmo? Pedro, envergonhado de tê-lo negado durante a paixão e de não poder dizer que o ama, responde:  - Você sabe tudo. Sabe que eu gosto de você

Gostar é diferente do verbo amar que Jesus usou quando perguntou pela primeira vez. Seja como for, a cada vez que Pedro confessa que gosta dele, Jesus confirma: então tome conta de meus cordeiros, cuide de minhas ovelhas. Na Igreja, o ministério só tem razão a partir dessa relação com Jesus. 

Diferentemente dos outros evangelhos, no texto joanino, é a única vez na qual Jesus diz a Pedro: Segue-me! Isso significa que não se pode ser quem coordena, sem primeiro ser discípulo. O texto parece dizer que, antes, Pedro não parecia tão preocupado com isso. O que isso diz para nós, hoje???

Cada um/uma de vocês é o/a discípulo/a amado/a, chamado à intimidade com o Ressuscitado no meio das lutas do povo. Aquela pesca à noite era a luta da sobrevivência para aqueles homens empobrecidos. Hoje, somos convidados/as a seguir Jesus no seu projeto de transformar o mundo no reino de Deus e nesse seguimento (“Segue-me!”, disse Jesus a Pedro), precisamos, como Pedro, acolher o que nos vem pela frente, tanto de fragilidades, como de sofrimentos. 

Esse evangelho parece colocar em comparação dois tipos de ministros: o representado pelo Pedro (apóstolo) e o representado pelo Discípulo Amado (discípulo e discípula). Ouçamos o que Jesus diz a respeito do Discípulo Amado: “eu quero que ele, ela (cada um de nós) permaneça até que eu venha”. Vamos sim permanecer nele. 

O seguimento no projeto e o permanecer na intimidade do seu amor serão a alegria e a força de nossas lutas e de toda a nossa vida. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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