O fogo teima em se manter aceso
(O evangelho de João 21 à luz da nossa realidade atual)
Nesse momento atual, no Brasil, mas também em outras partes do continente e do mundo, as comunidades de base, pastorais sociais e movimentos populares vivem tempos difíceis. Quem olha a realidade a partir da fé não pode deixar de pensar que estamos em tempos nos quais o poder do mal parece tomar conta de tudo. Por mais que protestemos e tentemos reagir, não há como negar que temos contra nós um sistema de poder opressivo e arrogante, mas também uma onda de direita que parece ter tomado conta de um povo que, hipnotizado pela Globo e outros meios de comunicação, se deixa arrastar para a barbárie. Por outro lado, mesmo nas Igrejas, que deveriam ser testemunhas fieis do reino de Deus nesse mundo, muitos ministros e fieis já não caminham com o Cristo e se agarram ao poder mundano e à propaganda do mal como se fosse bem.
A partir dessa realidade, podemos ler e meditar o capítulo 21 de João. Provavelmente se trata de um acréscimo posterior feito ao conjunto do texto evangélico. Em todos os outros capítulos, o quarto evangelho revela uma comunidade na qual, em geral, ninguém se chama de apóstolo. Todos da comunidade são discípulos e discípulas. E na segunda parte do evangelho, a comunidade é representada na figura do que o texto chama “o discípulo amado”.Na mesma época, as comunidades ligadas aos evangelhos sinóticos e a Paulo tinham apóstolos e a organização dos ministérios era mais específica. Provavelmente, o capítulo 21 de João foi acrescentado em uma época na qual a comunidade do discípulo amado teve de enfrentar a questão dos ministérios na comunidade. Todo o capítulo tem como protagonista a Pedro, figura chave e simbólica desse outro modelo de Igreja centrado nos ministérios de coordenação. É verdade que a comunidade do quarto evangelho diz claramente que Pedro conduz os discípulos a uma pesca que não dá resultado, diz claramente que, quando reconhece Jesus na beira do lado, Pedro reconhece estar nu, põe a túnica e se joga n’água (Normalmente, para entrar n’água, as pessoas não colocariam a túnica. Ao contrário, se despem). Em todo o capítulo, a figura de Pedro parece contraditória e até de certa forma criticada. Para mim, recebo como palavra de Deus nesse relato da pesca durante a noite que toda vez que o ministro toma iniciativa na missão sem se dar conta de que depende totalmente de Jesus, como se tivesse uma autoridade própria, não somente a missão fracassa, como a pessoa se revela nu, isso é, impotente. O próprio Jesus tinha dito na ceia: “Sem mim, nada podereis fazer”. Quantas vezes, a Igreja, a nossa Igreja, parece querer caminhar independentemente, supondo uma autoridade e uma assistência que teria sido prometida por Jesus mas sobre a qual ele perdeu o controle. Essa queixa de Jesus já me parece ter sido clara no episódio do lava-pés, quando o evangelho evita contar a instituição da ceia e prefere insistir no seu significado: o lava-pés. E aí Jesus diz a Pedro: “Se não aceitas que te lave os pés, não terás parte comigo”. Agora, de novo, depois da pesca que finalmente pescou tantos peixes, Jesus ceia com os discípulos, mas o evangelho nos deixa com essas palavras misteriosas: “Ninguém perguntava quem era porque todos sabiam que era o Senhor”. Ninguém é dono de Jesus. Ninguém pode ter certeza de saber quem e como ele se apresenta. Sua presença permanece oferecida a nós, mas ao mesmo tempo, devemos estar abertos a uma busca que é permanente e nunca totalmente satisfeita.
A segunda parte do relato desse evangelho nos conta que depois de cear, Jesus pergunta a Pedro: tu me amas? Pedro responde: Eu gosto de você. E Jesus parece perguntar: Gosta mesmo? E Pedro, envergonhado de o ter negado durante a paixão e de não poder dizer que o ama, responde: você sabe tudo. Sabe que eu gosto de você. A cada vez que Pedro confessa que gosta dele (diferente de usar o verbo amar que tinha sido o usado por Jesus), Jesus confirma: então tome conta de meus cordeiros, cuide de minhas ovelhas. Na Igreja, o ministério só tem razão a partir dessa relação com Jesus.
É a única vez no quarto evangelho que Jesus diz a Pedro: Segue-me.Isso significa que não se pode ser quem coordena sem primeiro ser discípulo. E o texto parece dizer que, antes, Pedro não parecia tão preocupado com isso. O que isso diz para nós, hoje???
Nessa celebração pascal de 2019, agradeço a Deus o fato de que, mesmo sentindo a impotência de nossas lutas que não deram certo (a pesca durante a noite), as comunidades se mantêm juntas e é a elas (a nós) que Jesus ressuscitado vem se manifestar e pode ser reconhecido. Para mim, nos povos indígenas que há poucos dias acamparam em Brasília e mesmo no meio de tantas repressões (nem puderam fazer o acampamento no Plano Piloto de Brasília) não desistiram da luta e reafirmaram sua determinação na caminhada e na certeza da vitória. Só a presença do Espírito de Jesus poderia dar essa força e essa luz, mesmo em meio a uma noite escura.
Esse evangelho me chama a ver a figura do Cristo ressuscitado nos irmãos e irmãs da pastoral dos pescadores que, daqui a poucos dias, vai celebrar sua assembleia de 30 anos e terei a alegria de estar com eles e receber deles e delas essa presença do Ressuscitado. Que alegria.
Cada um/uma de vocês é o/a discípulo/a amado/a, chamado à intimidade com o Ressuscitado no meio das lutas do povo, como aquela pesca à noite era a luta da sobrevivência para aqueles homens pobres. E nessa intimidade, somos convidados hoje a seguir Jesus no seu projeto de transformar o mundo no reino de Deus e nesse seguimento (Segue-me, disse Jesus a Pedro), ouçamos o que Jesus diz sobre cada um de nós: eu quero que ele, ela (cada um de nós) permaneçaaté que eu venha. Vamos sim permanecer nele. O seguimento no projeto e o permanecer na intimidade do seu amor será a alegria e a força de nossas lutas e de toda a nossa vida.