O poder revolucionário do cuidado amoroso
Com o 3º domingo do Avento, chegamos à segunda parte do Advento. . Enquanto nas duas primeiras semanas, os textos litúrgicos nos convidavam à expectativa do reino, nessa segunda parte, que iniciamos hoje, somos convidados/as a preparar com mais intensidade a própria festa do Natal, para que a memória do nascimento de Jesus nos torne mais humanos e fraternos. Por causa dessa proximidade do Natal, na tradição litúrgica, esse é chamado o Domingo da Alegria
Nesse domingo, as comunidades leem o começo da terceira parte do evangelho de Mateus (Mt 11, 1- 12). Depois de ter enviado os discípulos em missão (Mt 10), no primeiro verso do capítulo, o próprio Jesus parte pelas aldeias e cidades da Galileia. Começa a fazer ele mesmo o que tinha proposto aos discípulos. Assim, ele mostra, na prática, aos discípulos o que significa cumprir a missão e enfrentar os conflitos que a acompanham (v. 1). E o mais estranho é que o primeiro conflito ou incompreensão nem vem dos inimigos. No verso 2, mostra que, da prisão, João Batista manda discípulos interrogarem a Jesus a respeito de sua missão messiânica, ou seja libertadora. No contexto daquela época, João faz a Jesus a mesma contestação que hoje muitos cristãos fazem quando alguém cumpre uma missão libertadora: será que isso não é mais político do que religioso? Na Igreja Católica de hoje, quantos católicos se pudessem não fariam ao papa Francisco o questionamento se ele ainda cumpre o evangelho ou se mudou para outra coisa?
Conforme o evangelho, quem primeiro teve de se posicionar sobre Jesus foi João Batista, o profeta que estava preso e o posicionamento de João não foi positivo e sim de decepção e incompreensão. Claro que no caso de João, o problema não era a separação entre fé e política. Era que Jesus não parecia um agente da justiça de Deus no mundo. Não tinha a severidade e o rigor que João achava que o Messias deveria ter. Para anunciar a vinda do Messias, João se baseara em profecias que prometiam a manifestação da justiça e da cólera de Deus (como Ml 3, 2- 3). No tempo em que pregava nas margens do Jordão, conforme os profetas que anunciavam a vinda do Messias, João garantia que o Cristo viria ao mundo trazendo o julgamento divino. O messias deveria vir com força, como um machado na raiz das árvores. Separaria o trigo das palhas para queimá-las (Cf. Mt 3, 10). João Batista foi radical e por isso foi preso. Agora ele quer que Jesus realize suas obras de juízo, destinadas a privilegiar os justos e os eleitos e a condenar ímpios e impuros. Agora, está na prisão e os seus discípulos lhe contam como Jesus atua: curando e repartindo pão para as massas. E João se decepciona. Entra em crise de fé. E se sente como traído por Deus. Esse lhe tinha mandado anunciar um tipo de Messias e o que veio foi outro. Assim João parecia um desses profetas falsos que anunciam algo que não se cumpre. Por isso, manda os discípulos interrogarem a Jesus: “É você mesmo Aquele que vem, ou temos ainda de esperar por outro?”. A expressão “Aquele que vem” se referia ao Messias que deveria vir para restabelecer o reinado de Israel e libertá-lo dos seus inimigos (Cf. Salmo 118, 26; Dn 7, 13).
A dúvida de João é a porta de entrada desta seção do evangelho que será toda marcada pela desconfiança e mesmo pela rejeição. Jesus sai em missão e é questionado por João, rejeitado pelos habitantes das cidades do lago e mal visto pelos religiosos.
É provável que Mateus tenha contado a crise de vocação de João Batista e o posicionamento de Jesus sobre João para tratar da relação conflitiva ou tensa que havia entre o grupo dos seguidores de João e os cristãos na época de vocês. O evangelho quer mostrar a continuidade entre João e Jesus. Provavelmente, essa desconfiança e o descrédito foram dificuldades das comunidades não só do tempo de Jesus, mas do próprio tempo em que o evangelho foi escrito (anos 80). Então, respondendo aos questionamentos de João, Jesus está respondendo aos problemas da comunidade de Mateus, como também das dúvidas e questionamentos nossos que vivemos nos dias atuais.
Hoje, medito isso pensando em quantos irmãos e irmãs veem a realidade atual e se perguntam que sentido ainda têm a missão e o anúncio da salvação. Diante do tipo de religião que a gente vê nas Igrejas, o que significa a missão? Como nos posicionamos quando vemos bispos, padres, pastores e grupos evangélicos e católicos se colocarem a favor da extrema-direita? Como reagir ao fechamento de muitos do clero e da hierarquia católica às questões de gênero? Como reagir ao se ver televisões católicas acolhendo o representante do desgoverno que tomou conta do Brasil e o abençoando em nome de Deus?
As questões de João Batista a Jesus tinha um sentido mais ou menos assim: será que não está na hora da violência de Deus contra todo esse absurdo? Você, Jesus, não vai agir como Elias e fazer descer fogo do céu contra esses ímpios? Como lidar com padres, bispos e pastores que se revelam falsos profetas?
Jesus não responde diretamente à pergunta de João. Ele escolhe profecias diferentes que mostram a compaixão e a misericórdia divina com os necessitados (Is 35 e 61). Jesus não quer ser juiz e senhor da história. Coloca-se como pobre, descentrado, sempre ao lado do pequeno, do sofredor e mesmo do impuro e das pessoas pecadoras.
As suas ações só destacam uma coisa: a compaixão com as multidões cansadas e abatidas como ovelhas sem pastor, como antes o evangelho tinha mostrado (9, 36). Suas ações são de misericórdia e de vida para enfermos, pobres, impuros e excluídos. Jesus manda dizer isso a João Batista e adverte: cuidado. Aceite isso e não rompa comigo pelo fato de que a imagem de Deus que eu proponho não é a mesma a qual você se habituou. Pelo fato de não compreender, ou por ter pensado uma coisa e ter acontecido outra, não caia na armadilha do escândalo. Não chegue a “romper a sua relação de adesão” (sua fé). Deus sempre surpreende a gente.
Penso que até hoje, Jesus nos responde que a solução para essa crise e essa situação só pode vir através da radicalização do cuidado com os mais abandonados e uma atitude de mais humanidade ainda do que antes fazíamos. Heinrich Boll afirmou: “No Novo Testamento, há uma teologia da ternura que é sempre curativa: com palavras, com as mãos, com carícias, com beijos, com uma refeição em comum... Esse elemento do Novo Testamento, a ternura, ainda não foi descoberto. Tudo foi transformado em rixas e gritos. No entanto, há certos seres que podem ser curados simplesmente por uma voz, por uma refeição em comum. .. Então, imaginem-se algo assim como uma ternura socialista”[1].
Esse novo modo de pedagogia política e espiritualidade ainda precisa ser descoberto nos nossos grupos que ainda se pautam pela forma de ser rígida do mundo e de seus valores: a questão do poder, a ética da concorrência e assim por diante. Não haverá um Natal novo para nós se não aceitamos superar isso e nos tornar pequenos como Jesus.
Após deixar claro qual é a mais profunda política de Deus e, portanto, a sua maneira de cumprir a missão – como sinal e testemunha da ternura divina, Jesus fala com o povo sobre João: “A quem vocês foram ver no deserto?”.Confirma que João é profeta. É mesmo o maior dos profetas, o precursor do Messias, como um novo Elias, o profeta que a piedade popular acreditava que voltaria ao mundo antes da vinda do Messias Jesus encerra a sua palavra com uma sentença enigmática: “Entre os nascidos de mulher, nunca houve alguém maior do que João. Entretanto, o menor no reino dos céus é maior do que ele” (v. 11). João é alguém muito importante, o maior de todos. Mas, de que adianta essa grandeza humana no reino dos céus? O que Jesus diz com esse tipo de provocação muito no estilo dos rabinos do seu tempo é que o importante não é tanto admirar a João, mas viver de um modo que se possa participar do reinado divino. As diferenças que João tinha percebido e que fez com que ele se interrogasse sobre Jesus, de fato, não são assim tão grandes. Jesus diz uma sentença enigmática: “Desde os dias de João até agora o reino de Deus se toma pela força e são os fortes que se apoderam dele” (v. 12).
João não precisa saber se Jesus é aquele que há de vir. O que João precisa saber é que ele mesmo, justamente por estar no cárcere, por estar sofrendo perseguição, por defender o direito e a justiça, é o próprio enviado, o próprio Cristo. Esse Natal será Natal para nós se cada um/uma de nós formos esse Cristo que deveria vir e veio para testemunhar o amor e a compaixão divina pelos necessitados no coração do mundo e nas nossas comunidades.
[1] - citado por J. A. PAGOLA, O caminho aberto por Jesus, Mateus, Vozes, 2011, p. 137.