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O processo bolivariano e a contribuição de José Comblin

(texto escrito para um livro coletivo em homenagem ao padre Comblin, Julho de 2011)

Marcelo Barros

Enquanto outras partes do mundo correm o risco de afundar na crise de civilização que tomou o vulto de uma gravíssima crise econômica, vários países da América Latina, ao contrário, vivem um novo processo social e político. Esse caminho renovador tem nomes diferentes, conforme a realidade e a cultura local. Na Venezuela, se chama revolução bolivariana. No Equador, processo cidadão e na Bolívia, ressurgência indígena. Entretanto, em todo o continente, é um processo que tem sua inspiração no sonho libertador de Simon Bolívar no início do século XIX. Atualmente, o caminho bolivariano assume a emergência de novos sujeitos sociais, como os povos indígenas, as comunidades de cultura afro-descendente e os movimentos populares do campo e da cidade. Embora ainda incipiente e frágil, aponta na direção do que, no início do século XIX, sonhava Simon Bolívar: a integração de todos os povos desta imensa “pátria grande”.

Mesmo se ainda é embrionário, o professor Boaventura de Souza Santos tem razão ao afirmar: “A América Latina tem sido o continente, onde o socialismo do século XXI entrou na agenda política”[1]. Analistas indígenas como David Choquehuanca, ministro das Relações Exteriores da Bolívia e especialista em cosmovisão andina, não aceita dar a esse processo o título de socialista. Afirma que, de forma diferente do capítalismo, também o socialismo prioriza o dinheiro e as relações econômicas, enquanto os processos sociais emergentes no continente devem se basear no “bom viver”, conceito indígena que significa uma vida de qualidade, na comunidade humana e na relação com a natureza. Ora, se isso é verdade, esse assunto não pode deixar de interessar profundamente e de envolver as comunidades cristãs que unem fé e vida, espiritualidade e política transformadora, assim como os teólogos e teólogas que, a partir da prática popular, procuram explicitar uma teologia que, desde o começo dos anos 70, chamamos de Teologia da Libertação. Ora, aparentemente, isso não está ainda acontecendo, ao menos de forma que a sociedade envolvente possa perceber e seja chamada a participar ou a tomar posição. Por isso, é importante refletir sobre como o padre José Comblin procurou participar do processo e o que ele nos ensinou a respeito.

1 – A inserção dos/as teólogos/as nos movimentos de base

Desde o início, a Teologia da Libertação se caracterizou por ser uma reflexão surgida a partir da prática das comunidades e movimentos que ligam fé e vida, espiritualidade e compromisso social de transformar o mundo. A partir de uma eclesiologia desenvolvida pela Teologia da Libertação, nos anos 70, surgiu no Brasil e em outros países do continente uma nova forma de viver a missão. A pastoral indigenista deixou de ter como objetivo converter os índios à fé cristã e sim defender suas vidas, suas terras e suas culturas. A pastoral da terra não era a mesma coisa da antiga “pastoral rural”. Ia além das velhas fórmulas de evangelização para simplesmente inserir-se na justa luta pela terra, pela reforma agrária e pela justiça no campo. Do mesmo modo, surgiram novas pastorais para os trabalhadores da cidade, para a juventude e para outros setores da população mais pobre. Procurou-se ler a Bíblia a partir da vida e da luta das comunidades cristãs populares. Desta inserção, surgiu uma nova forma de compreender a missão, a natureza da Igreja, a própria pessoa de Jesus Cristo e até a nossa forma de contemplar e de pensar Deus. A nova epistemologia teológica suscitou diversas teologias contextuais como as teologias negras, as teologias feministas da libertação, as teologias índias e as ecoteologias.

Comblin, o nosso padre José, esteve presente e atuante na primeira elaboração da Teologia da Libertação. No final dos anos 60, ele podia fazer isso atuando em seminários e institutos teológicos como o ITER (Instituto de Teologia do Recife) e depois no Seminário Rural onde, com outros/as, desenvolveu o método da teologia da enxada para formar teológica e pastoralmente padres, religiosos/as e missionários/as leigos/as que pudessem exercer estas tarefas eclesiais sem deixar de ser lavradores ou pelo menos pessoas de origem e de inserção rural. Nos anos 80, as mudanças eclesiásticas que o pontificado do papa João Paulo II realizou, assim como as nomeações de bispos no Brasil e em outros países do continente, começaram a impedir a continuidade desse trabalho dentro das instituições de responsabilidade direta dos bispos e do clero. Dom José Cardoso, então arcebispo do Recife, sucessor de Dom Hélder Câmara, fechou o ITER. Mais tarde, se tornaram igualmente inviáveis o instituto de teologia em João Pessoa e os cursos teológicos mantidos por congregações religiosas. Para se adequar às “novas” exigências de Roma e de muitos hierarcas, vários teólogos e teólogas, antes comprometidos com a Teologia da Libertação, mudam pouco a pouco o seu discurso e se ajustam ao modelo oficial exigido. O padre José se afastou das instituições teológicas mais oficiais e continuou a assessorar grupos de pastoral popular e comunidades alternativas. Continuou produzindo vários livros, escritos em uma linguagem mais simples, como teologia feita diretamente para o povo. Em entrevistas e palestras, ele afirmava perceber que cada vez mais os teólogos e teólogas tinham dificuldade de se manter inseridos nas lutas populares. Algumas vezes, até com uma ponta de lamentação, perguntava: “Onde estão os teólogos e teólogas mais jovens: na academia ou no meio do povo? No nosso diálogo, procurei mostrar que, mesmo sendo uma minoria abrâamica, como chamava Dom Hélder Câmara, vários companheiros e companheiras continuam inseridos nos movimentos do campo e da cidade, além de estarem comprometidos com as teologias negras, indígenas e feministas. De minha parte, principalmente nos últimos anos de sua vida, tive a graça de acompanhar o padre José no seu apoio e inserção no processo bolivariano que ocorre no continente.

2 – O novo bolivarianismo

A primeira vez que ouvi o termo bolivarianismo era ainda quase criança e, através de um monge do mosteiro ao qual eu pertencia, tinha acesso a algumas das cartas circulares que Dom Hélder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife, enviava de Roma, durante as sessões do Concílio Vaticano II. Recentemente, publicada em uma coleção oficial, reli a carta que, de Roma, durante a última sessão do Concílio, Dom Hélder enviou a seus/suas auxiliares e amigos/as: “O encontro com Monsenhor Dell´Acqua merece um registro especial. (Ele é secretário e conselheiro do papa Paulo VI). A problemática geral da América Latina e do 3º mundo lhe é familiar. (...) Entende e estimula o novo Bolivarianismo, no sentido do esforço conjunto para a independência econômica do continente, em articulação sempre maior com o 3º mundo e abertura para o mundo inteiro. Entende e estimula a cobertura da Igreja à idéia de um Mercado Comum Latino-americano...”[2].

Lembrei-me muito desta palavra do Dom, quando, no 6º Fórum Social Mundial, em Caracas, (janeiro de 2006), fui convidado pelos movimentos populares, especialmente a Via Campesina, a coordenar, em um encontro que haveria no ginásio Poliedro, entre os movimentos populares e o presidente Hugo Chávez, o momento inicial da mística e o concluísse apresentando o presidente. O padre Comblin estava presente em Caracas naquele fórum e me deu todo apoio para eu aceitar esta tarefa e cumpri-la com competência. A partir daí, percebi que enquanto vários companheiros de teologia, mesmo alguns ligados às comunidades populares e à Teologia da Libertação, tinham muitas restrições ao processo bolivariano atual e mais ainda a seus líderes políticos (Chávez, Evo Morales, etc), José Comblin não hesitava em apoiar e se fazer presente no processo.

Em dezembro de 2006, entre outros brasileiros, ligados a partidos políticos ou a entidades da sociedade civil, Dom Tomás Balduíno, bispo emérito de Goiás, o padre Comblin e eu, fomos convidados pelo Conselho Eleitoral da Venezuela para ser observadores internacionais das eleições presidenciais naquele país. Ficamos hospedados no mesmo hotel em Caracas. Cada observador escolhia uma área do país na qual iria acompanhar o processo eleitoral e as apurações. Tive medo de deixar o padre Comblin, já com mais de 80 anos, ir sozinho a áreas distantes do interior. Propus que ficássemos juntos para visitar e acompanhar as periferias urbanas da capital. Foi o que fizemos os três juntos (Dom Tomás, Comblin e eu). Naqueles dias, o que mais me impressionou foi como Comblin desejava que Chávez fosse mais uma vez reeleito. Segundo ele, isso garantiria a continuidade do processo bolivariano. Quando a vitória do presidente foi confirmada, o padre Comblin nos estimulou (a Dom Tomás e a mim) a ir ao palácio presidencial assistir o primeiro discurso e a festa do início do novo mandato. Alguém que conheceu José Comblin sabe que no seu entusiasmo pelo processo bolivariano não havia nenhuma ingenuidade política e menos ainda uma adesão acrítica a um poder personalista que todos nós desejaríamos ver mais partilhado. O que Comblin representava ali era muito mais o homem sábio e experiente que, havia meio século, conhecia o continente latino-americano e sabia o significado daquela vitória num país secularmente dominado por uma pequena elite e agora coordenado por um governante apaixonado pelos oprimidos e comprometido em transformar a estrutura social do país a serviço dos mais empobrecidos.

Em fevereiro de 2009, eu estava me restabelecendo de uma grave enfermidade em Camaragibe, PE. Como sempre fazia com os amigos, o padre Comblin veio me visitar. Naquela ocasião, contei-lhe que, em agosto de 2008, havia sido convidado para participar da posse do presidente Fernando Lugo em Assunção e durante um café da manhã, o presidente Chávez, que estava lá, me reconheceu, chamou e pediu que eu escrevesse um livro sobre como seria uma espiritualidade bolivariana (macro-ecumênica e humana). Comblin me estimulou tanto a escrever este livro que, naqueles mesmos dias, eu o comecei. Durante o tempo em que o escrevi, duas vezes conversei com ele sobre alguns elementos e conteúdos que eu hesitava em colocar. E ele me deu uma boa assessoria, sempre mostrando seus desejo de colaborar com o bolivarianismo.

3 – A contribuição teológica de José Comblin ao bolivarianismo

Para mim é difícil escrever sobre isso porque, a menos que eu saiba, o padre José não escreveu diretamente sobre o tema. Não quero atribuir a ele palavras minhas ou de outros. O que posso é testemunhar coisas que ele me disse e outros pontos que eu sei que ele pensava.

Há quarenta anos, (final dos anos 60 e começo da década de 70), o padre Comblin escreveu em dois grandes volumes uma “Teologia da Revolução” (um primeiro volume sobre a teoria) e depois uma “Teologia da Prática Revolucionária”[3]. Durante décadas, a Teologia da Libertação assumiu uma opção revolucionária, mas em uma linha diferente das revoluções sociais até então conhecidas no mundo. Vários teólogos e teólogas se puseram em diálogo com o marxismo, mas relendo-o a partir de uma realidade latino-americana muito diversa da européia no século XIX e na primeira metade do século XX. Durante mais de vinte anos, as ditaduras militares e governos de extrema direita em vários de nossos países impediram que pudéssemos falar claramente de revolução. Falávamos de conscientização libertadora, de promoção humana, de reforma agrária e urbana e de transformação social. Mas, menos de revolução social e política. Na Nicarágua dos anos 80, falamos em “revolução sandinista”, mas isso também a partir dos anos 90, ficou menos claro e continuou sendo mais desejo e esperança. De fato, foram Hugo Chávez e seus companheiros que, a partir do início dos anos 90, criando “círculos bolivarianos” nas periferias de Caracas, nos trouxeram de novo a questão da revolução social e política, não apenas como tema de estudo, mas como desafio concreto, necessário processo a ser assumido em nossos países. No início, mesmo quando ele já era presidente, ainda não havia assumido claramente uma opção socialista. Depois da tentativa de golpe de estado (2002), o presidente venezuelano e as comunidades envolvidas nesse processo se deram conta da inevitabilidade do processo socialista. De fato, as bandeiras do movimento social começaram a ser: “Socialismo ou Barbárie”, “Socialismo ou Morte”.

José Comblin conheceu bem vários países do continente, principalmente o Brasil, o Chile e o interior do Equador (a diocese de Riobamba no tempo do Monsenhor Proaño). Estudou e conheceu de perto vários movimentos sociais latino-americanos que se declaravam socialistas. Nos anos 80, vários teólogos e pastoralistas brasileiros tiveram contatos e aprofundaram um bom diálogo com líderes e com grupos ligados ao governo cubano. Comblin não participou desse grupo. Na mesma época, vários de nós tivemos contato e participamos de atividades ligadas aos sandinistas da Nicarágua. Ao que eu saiba, Comblin também não participou disso. Entretanto, assim que surgiu oportunidade, ele tomou contato com a nova realidade bolivariana da Venezuela e se mostrou várias vezes favorável ao processo ali iniciado com o governo Hugo Chávez.

O professor Boaventura de Sousa Santos distingue três etapas no processo bolivariano que está acontecendo a partir da Venezuela, em vários países latino-americanos: (1) a transição que os diversos países fizeram da ditadura para uma verdadeira democracia, cada vez mais participativa; (2) A transição do colonialismo seja europeu, seja norte-americano, para uma verdadeira descolonização; (3) a transição do capitalismo para um caminho que se constitua como novo socialismo para o século XXI[4].

Ao conversar comigo sobre isso, Comblin acrescentou um elemento para ele fundamental e que considero uma importante contribuição ao bolivarianismo[5]. Ele a formulava da seguinte forma: (4) A transição de um Estado separado e distante da sociedade civil para um tipo de organização do Estado no qual os empobrecidos tenham poder decisório e os governantes sejam obedientes ao povo.

De fato, ele percebia que os governantes ligados a esse processo (como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa), procuram governar a partir dos interesses e das causas dos mais pobres. Entretanto, segundo Comblin (e na linha da Teologia da Libertação), o mais importante não é apenas a política dos Estados e a forma nova como os governantes assumem o poder e sim, sobretudo, que haja um real protagonismo dos índios e das comunidades populares.

Ele dizia que, no Peru dos anos 40, Mariátegui já dizia: “o Socialismo latino-americano não será decalque nem cópia do que houve no passado, mas uma criação heróica dos povos”. Então, se é assim, como escreveu uma companheira chilena: “O desafio é exatamente reinventar o socialismo como projeto popular, amassado com terra, regado com a memória de todas as resistências, em território recuperado pelos homens e mulheres que, com suas vidas, escrevem uma história verdadeira, aparecendo aos desaparecidos e desaparecidas, hasteando suas bandeiras desgarradas, para que as novas gerações alinhavem artesanalmente, tecendo a trama  de uma sociedade de homens e mulheres livres, em harmonia com a natureza da qual são, se sabem e se sentem parte”[6].

Comblin insistia: essa deve ser a novidade do atual bolivarianismo. Se, na Venezuela, seja no início do século XIX, com Bolívar, seja no início da década de 90, com Hugo Chávez, o movimento começou nos quartéis e em meios militares (que fizeram um bom trabalho), agora as raízes do movimento só se tornam sólidas e fecundas se se alastram pelas comunidades populares e por suas culturas próprias, seja na Venezuela, seja em outros países latino-americanos. Como muitas destas comunidades e movimentos têm em seus componentes muitos homens e mulheres cristãos e que atuam na transformação social a partir de sua fé, o padre Comblin nos dizia que a Teologia da Libertação deveria oferecer novos subsídios aos(às) militantes para que possam aprofundar sua missão própria no processo bolivariano.

4 – Uma espiritualidade que parte da dignidade da Política

Para a fé cristã, espiritualidade significa “uma vida conduzida pelo Espírito”. Viver a espiritualidade é descobrir no íntimo de si mesmo e no coração do mundo uma ação que diviniza. Na América Latina, há mais de 30 anos, insistimos que este processo se dá através da inserção no meio dos pobres e da solidariedade efetiva com os oprimidos na sua luta pela libertação. Comblin sempre nos ajudou a aprofundar isso e ele mesmo sempre insistiu nesta linha. Nos últimos anos, esse caminho social e político se concretizou, não exclusivamente, mas antes de forma privilegiada, no processo bolivariano do qual estamos falando.

Comblin foi profundamente marcado por vários missionários e pastores latino-americanos. Ele escreveu sobre os que chamava de “pais da Igreja na América Latina”. Entre eles destacava os antigos pastores que, nos primeiros tempos da colonização, defenderam os índios e negros, mas também salientava pastores contemporâneos. Em primeiro lugar vinha Monsenhor Oscar Romero arcebispo mártir de El Salvador, uma figura que o marcou muito, e depois Leônidas Proaño, bispo de Riobamba no Equador e profeta da causa indígena e nosso querido Dom Hélder Câmara, com o qual Comblin trabalhou durante muitos anos. Esses três pastores desenvolveram uma espiritualidade que se expressava na solidariedade com os empobrecidos.

Na semana santa de 2003, o padre Comblin pregou um retiro no mosteiro beneditino de Goiás. Ele comparou o processo do martírio que sofreu Dom Romero à paixão de Jesus, como os evangelhos a contam. E mostrou como em ambos os casos, o que estava em jogo era a proposta de uma nova forma de organização social. Jesus, como depois Romero, propunha uma forma política de se viver a espiritualidade evangélica, ou seja, a mística do reino. De fato, uma espiritualidade inserida no processo de construção de um novo socialismo pressupõe a valorização da política como luta pelo bem comum. No passado, muitas vezes, houve certa tendência nos círculos espiritualistas a considerar a política como “coisa do mundo”, enquanto deveríamos nos interessar pelo que é eterno e para além das coisas materiais. Infelizmente, ainda é, hoje, a posição de certos grupos eclesiais de tipo fundamentalista e de tradição pietista, seja na Igreja Católica, seja em confissões evangélicas, assim como também assim pensam ou agem alguns grupos espiritualistas mais livres.

Já no início dos anos 90, o teólogo Jon Sobrino escrevia que a misericórdia não pode ser apenas uma prática ocasional, vivida a varejo, mas deve se constituir como um “princípio estruturador e permanente da vida e das ações de cada pessoa e de cada grupo eclesial[7]”. O papa Paulo VI falava na política como exercício de um amor (caridade) social e estruturado. Essa luta pelo bem-comum inclui uma denúncia constante do de um mal-comum que, em Medellín, os bispos católicos latino-americanos denominaram de “violência institucionalizada”. Não basta denunciar. É preciso enfrentar e combater um mal que massacra povos inteiros.

Ainda vivemos em uma cultura social na qual, muitas vezes, o poder político parece existir mais para si mesmo do que em função da sociedade. Temos de nos persuadir de que toda a função política – executiva, legislativa ou judiciária – tem sua fonte na sociedade, tomada em sua totalidade e não em uma de suas partes, principalmente uma classe privilegiada e  minoritária. Monsenhor Romero chamava a política do serviço ao bem comum de “a grande política”. A política imersa na cultura capitalista faz com que tudo tenha seu preço: candidatos, partidos, voto dos eleitores e assim por diante. Ao contrário, uma política movida pela espiritualidade socialista se baseia no respeito à dignidade humana e só pode existir quando se faz a política depender da ética e da transparência no uso da coisa pública. Uma obra importante de uma espiritualidade humana é “democratizar a democracia”, ou seja, radicalizar a democracia de modo que não seja somente o regime formal de uma representação parlamentar, mas se torne o campo de uma verdadeira participação das bases no processo social e político[8].

“Os movimentos populares criam e recriam modalidades de diálogo, de ação e de práticas que abarcam as relações interpessoais, grupais e de cada movimento com outros espaços da sociedade. As maneiras em que elas se estabelecem, antecipam o mundo que se está sonhando criar. Se a corrupção e o autoritarismo, a violência e a intolerância são consistentes com as políticas hegemônicas do capital, a reprodução dessas modalidades no seio dos movimentos não tem senão a intenção de fazer um colapso na capacidade de projetar, na subjetividade e no imaginário do povo, as possibilidades de uma nova sociedade. O “homem novo”, que o Che tentou criar com sua própria vida, a “nova mulher”, encarnam os valores e atitudes opostos ao tipo de homens e mulheres que reproduzem a cultura capitalista: egoístas, consumistas, individualistas”[9].

O mundo atual sofre um aumento descomunal da pobreza injusta e exclui a maior parte da humanidade dos recursos mínimos para uma vida digna. Em tal contexto, uma política movida pela espiritualidade socialista tem uma clara opção pelos empobrecidos. Como diz a linguagem bíblica sobre o Deus do Êxodo, quem pratica essa política “escuta o clamor dos oprimidos” e procura organizar o mundo a partir de uma justiça amorosa e radical que defenda a causa dos pequenos. E não se trata de servir aos oprimidos, mas de partir deles, como sujeitos e protagonistas. É uma política espiritual justamente porque não se restringe à representação parlamentar ou que a sociedade oficial chama de “democrática”, mas promove a participação cidadã. Toda a revelação bíblica é justamente um apelo ao reconhecimento desta cidadania, pela qual todos os seres humanos são irmãos uns dos outros porque são filhos e filhas de Deus. É isso que Comblin mostrava em seu livro “O povo de Deus” e finalmente no livro “A Profecia na Igreja”, ambos editados pela Paulus (São Paulo).

5 – Uma espiritualidade eclesial, mas não eclesiástica

Michel de Certeau, grande intelectual e cristão francês do século XX, afirmava: “É mística a pessoa que não consegue parar de avançar e, com a certeza do que lhe falta, sabe de cada lugar e objeto que não é isso e que não pode contentar-se só com isso. O desejo cria um excesso. A pessoa excede, quer ir sempre mais longe. Não habita em nenhuma parte. É habitada[10]”.

Todas as pessoas que tiveram o privilégio de conviver mais de perto com o padre José Combin sabem que isso poderia se aplicar profundamente à vida desse profeta. De fato, quando analisamos sua luta e sua produção teológica dos anos até os dias em que Deus o levou, podemos perceber que ele nunca parou. Evoluiu sempre e em uma direção cada vez mais aberta, profética e provocadora.

O padre José que, nos anos 70 e 80, tinha escrito predominantemente sobre os processos sociais e políticos na América Latina e no mundo e a missão da Igreja nesses processos, nos últimos anos de sua vida, foi levado a escrever mais sobre a própria estrutura interna da Igreja e a partir daí elaborar uma teologia nova sobre a pastoral urbana, o povo de Deus, a profecia e mesmo insistir em uma crítica  evangélica às estruturas eclesiásticas cada vez mais conservadoras e centralizadas. Quem acompanhou mais de perto o pensamento e a obra do padre Comblin sabe que ele aprofundou mais isso por fidelidade às comunidades populares e para servir ao povo empobrecido. Enquanto ele sentia os bispos e padres ligados às comunidades pobres e a serviço da causa dos oprimidos, embora a estrutura eclesiástica fosse sempre pesada e muitas vezes pouco evangélica, ele não achou importante aprofundar essa questão das estruturas. Quando percebeu que a maioria do episcopado e do clero começou a se tornar mais elitista, a se afastar das bases e a não apoiar as pastorais populares, ele começou a desenvolver uma profunda crítica a estas estruturas hierárquicas pouco evangélicas. Nesse caminho, ele foi considerado incômodo e viu diversas portas lhe serem fechadas. Como profeta que era, isso não lhe pareceu tão estranho. Com razão, Dom Oscar Romero já tinha advertido: “É fácil ser portador da Palavra e não incomodar a ninguém. Basta ficar no espiritual e não se engajar na História. Dizer palavras que podem ser ditas, não importa onde e quando, porque não são propriamente de parte alguma” [11].

Nos seus últimos anos, poucos bispos o apoiaram diretamente, embora não muitos tivessem coragem de contestar sua sabedoria e doutrina sempre tão profunda. Dom José Maria Pires, com quem Comblin fundou o seminário rural e toda a perspectiva missionária dos padres e missionários do campo, permaneceu como sempre seu amigo. Dom Luiz Cáppio, bispo de Barra, que mobilizou a grande luta contra a transposição do rio São Francisco, o acolheu em seu último ano de vida e se tornou um grande amigo do padre José. E ele (Comblin) continuava sempre assessorando o CEBI e as pastorais populares, assim como os grupos religiosos inseridos.

No começo do século XXI, ao saber que, no mundo inteiro, começava um movimento por um novo concílio ecumênico, o padre Comblin escreveu um artigo explicando que se o tal novo Concílio fosse, como teria de ser, convocado pelo papa e muito provavelmente em Roma, seria ainda mais fechado e dogmático do que a atual estrutura do Vaticano. A proposta dele, como a de muitos cristãos e cristãs em todo o mundo, era a de irmos aprofundando a partir das bases um processo conciliar sem prazo para concluir e que fôssemos discutindo os pontos fundamentais que achamos importantes para a renovação da Igreja. O artigo se encontra em um site da internet que é possível consultar. É só escrever o nome Comblin no site www.proconcil.com

Em uma conversa recente, o padre José dizia que estava escrevendo sobre “O Evangelho e a Instituição”. Ele queria aprofundar o porquê de suas críticas à forma atual como o papado está organizado e como a hierarquia eclesiástica é pensada. Estava convencido de que, embora nos primeiros séculos do Cristianismo a inserção da Igreja na cultura greco-romana tenha sido uma obra genial de encarnação e de eficaz implantação da fé, agora, principalmente para a realidade latino-americana, mas mesmo no diálogo com o mundo atual, a Igreja tem de se tornar capaz de se libertar das amarras do helenismo e fazer um sério esforço para se desocidentalizar. De minha parte concluo que o processo bolivariano é para os cristãos e cristãs do continente uma feliz oportunidade de aprofundar o processo de uma vivência cristã a partir das culturas ameríndias ou, como podemos dizer criando um neologismo significativo, afro-latíndias (afro-descendente, indígena e crioula ou latina)[12].

6 – Para continuarmos o caminho

Para aprofundarmos a herança do padre Comblin, não podemos ficar apenas nos temas concretos que ele desenvolveu. Ele nos estimulou a prosseguir no caminho da abertura eclesial e profética como uma das bases e fundamentos da nossa participação como cristãos e cristãs no novo processo social e político latino-americano que aqui chamamos de bolivariano. Então, o desafio que fica para isso é que tipo de espiritualidade e teologia podem ajudar as comunidades cristãs a sentir-se plenamente participantes deste caminho para um novo socialismo com cara latino-americana.

 Todos sabemos que um dos obstáculos à inserção no social e no político vem sempre de uma visão dualista da fé. Se a missão da Igreja é predominantemente espiritual e a realidade material é menos importante por que preocupar-se em se inserir neste mundo conflitivo? Desde os seus inícios, a Teologia da Libertação já teve de enfrentar este problema e sublinhar que só existe uma história e nela se dá a salvação. Agora, este tema toca a própria noção de Deus. É preciso relativizar a tradição que mantém uma distância entre Criador e criatura e nos faz pensar em Deus como alguém que, embora intervenha na história como Salvador e Libertador, é sempre alguém “de fora”.

Na Venezuela e outros países, os governos comprometidos com esse novo processo têm consciência que um desafio atual e urgente é aprofundar as raízes culturais deste novo bolivarianismo e fomentar uma nova cultura que una a importância do coletivo ao respeito da subjetividade. A prioridade continua sendo dada ao comunitário e social, mas sem negar nem diminuir a importância do subjetivo, do emocional e mesmo do direito individual que não é isolado e não se dá fora da comunidade. Sem dúvida, a Teologia da Libertação e a espiritualidade cristã podem ser importantes nesta tarefa. Às vezes, o processo espiritual é, ao mesmo tempo processual,  intermitente e, por outro lado, sempre contemporâneo. Ele supoe a “descontrução do eu egoísta ou isolado. Entretanto, logo em seguida, ou em um processo mais lento, ou mesmo concomitantemente, deve emergir a reconstrução do eu como sujeito que se está divinizando.

Nos Evangelhos, Jesus insiste que um primeiro passo neste caminho é a necessidade permanente e urgente da “conversão” interior (metanoia). Nos grupos religiosos, às vezes, ainda se concebe esta conversão como algo intimista e ligado exclusivamente à dimensão moral da vida. Sem dúvida, isso é importante e faz parte do processo, mas quando dizemos “com-versão”, estamos imediatamente nos referindo a um processo comunitário (com). Trata-se de uma renovação inteiror profunda, ou mesmo um renascimento que corresponde ao que Marx chamava de “advento do homem e da mulher novos” e Che Guevara aludia, quando dizia: “um socialismo apenas interessado na redistribuição dos bens materiais não me interessa. Só vale a pena o socialismo se for para se encontrar a renovação do homem e da mulher: o ser humano renovado”.

Como estamos falando de “espiritualidade”, isto é, de intimidade com Deus, o caminho espiritual do Pluralismo Cultural e Religioso nos deve fazer encontrar esta unidade na diversidade no próprio ser divino. É isso que chamo de “hierodiversidade”[13]. A biodiversidade é um conceito novo para a ciência, mas desde antigamente as culturas ancestrais contemplam um princípio unificador, presente na diversidade dos seres vivos. Os índios do Xingu dizem que o Espírito das águas repousa na floresta e o Espírito da floresta se refaz nas águas do rio. Comunidades afro-descendentes falam de Axé como a energia divina, presente em manifestações muito diversas como fonte de amor e alegria.

Uma espiritualidade socialista bolivariana aplica o mesmo principio às culturas. Nenhum grupo pode viver sem integração com os outros. Esta conexão tem uma dimensão antropologicamente espiritual. É uma dimensão na qual cada cultura não se pensa de forma auto-suficiente, mas como inter-ligada às outras. A religião pode servir como método para nos tornar mais humanos. O que estou chamando de hierodiversidade atravessa as comunidades religiosas, mas vai além das religiões. Permite viver a fé sem se fechar em um sistema. A revolução bolivariana não pode se dizer “cristã” ou “budista”, assim como uma revolução islâmica (por exemplo, a iraniana) não teria sentido em um contexto pluralista como a América Latina. Os processos revolucionários atuais devem ser abertos à espiritualidade panecumênica e intercultural vivida no continente e se oferecer como espaço de convivência e atuação de cristãos, crentes das religiões afro-descendentes, indígenas e assim por diante.

Esta proposta implica enraizar-se nas culturas autóctones, mas precisamente para ser capaz de nos tornarmos, como dizia o padre Ernesto Balducci, “um ser humano planetário”. Assim ele explica: “Sem negar nada do que sou, devo intuir uma nova identidade de crente. O ser humano planetário é pós-cristão, no sentido de que a ele não se adaptam determinações que o dividam do comum dos outros seres humanos (...). A expressão neo-testamentária com a qual minha fé melhor se expressa é a que aparece diversas vezes dita por apóstolos e profetas no livro dos Atos e do Apocalipse: “sou somente um ser humano”. (...) Esta é minha profissão de fé, sob a forma de esperança. Quem ainda se professa ateu, ou leigo e tem necessidade de um cristão para complementar a série de representações sobre o palco da cultura, não me procure. Eu não sou nada mais do que um simples ser humano”[14].

Dom Pedro Casaldáliga esclarece: “A Utopia continua, apesar de todos os pesares. Escandalosamente desatualizada nesta hora de pragmatismos, de produtividade a todo custo e de pós-modernidade escarmentada. (...) Esta Utopia está em construção. Somos operários da Utopia. A proclamamos e a fazemos: é dom de Deus e conquista nossa. Assim, queremos “dar razão da nossa esperança” (1 Pd 3). Intentemos, então, viver com humildade e com paixão, uma esperança coerente, criativa, subversivamente transformadora”[15].


[1] - Cf. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros Amigos, março 2010, p. 42.

[2] - DOM HELDER CÂMARA, Circulares Conciliares, Volume I – Tomo III, 68ª Circular, Roma 16/ 17. 11. 1965, Recife, Editora CEPE, Instituto Dom Helder Câmara, 2009, p. 253.

[3] - JOSÉ COMBLIN, Théologie de la Révolution (théorie), Paris, Universitaires, 1970. Cf. também JOSÉ COMBLIN, Théologie de la Pratique Révolutionnaire, idem, 1974.

[4] - . BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, A esquerda tem o poder político, mas a direita continua com o poder econômico. In Caros Amigos, março 2010, p. 44.

[5] - Refiro-me ao estudo que resultou no livro: MARCELO BARROS, Para onde vai Nuestra América, (Espiritualidade para o século XXI), São Paulo, Ed. Nhanduti, 2011.

[6] -  CLAUDIA KOROL, Socialismo, uma Sociedade de Homens e Mulheres Livres, in Agenda Latino-americana Mundial 2009, p. 33.

[7] - Cf. JON SOBRIÑO, Princípio Misericórdia, Petrópolis, Ed. Vozes, 1991. El Principio Misericórdia foi publicado em Sal Terrae, Madrid, 2007.

[8] - CF. JOSE M. CASTILLO, Situación Sociorreligiosa y Espiritual de nuestra Sociedad, in XXIV CONGRESO DE TEOLOGÍA, Espiritualidad para un mundo nuevo, Madrid, Centro Evangelio y Liberación, 2004, p. 35.

[9] - CLAUDIA KOROL, O Ser Humano como Ser Político, in Agenda Latino-americana Mundial 2008, p. 32,

[10] - MICHEL DE CERTEAU, Le voyage mystique,  Paris, B.S.R/ Le Cerf, 1988, citado por PIERRE GIRE, Le Christianisme en dialogue avec ses mystiques, in Chémins de Dialogue, 18/ 2001, p. 143.

[11] - OSCAR ROMERO, l´Amour Vainceur, citado por PIERRE VILAN, Os Cristãos e a Globalização, Sao Paulo, Ed. Loyola, 2006, p. 41.

[12] - Cf. MARCELO BARROS, O Sabor da Festa que renasce, (Para uma Teologia Afro-latíndia da Libertação), São Paulo, Ed. Paulinas, 2009.

[13] MARCELO BARROS, Moradas do vento nos caminhos humanos, (Para uma teologia da hiero-diversidade), in Revista Concilium, número 1, ano de 2007.

[14] - ERNESTO BALDUCCI, L´Uomo Planetario, Brescia, Ed. Camunia, 1985, 1° ed., p. 189 (a história do navio), p.

[15] - DOM PEDRO CASALDÁLIGA, Para um Socialismo Novo, a Utopia continua, Carta introdutória da Agenda Latino-americana Mundial, 2009, p. 10 e 11.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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