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O profeta que queria apressar a madrugada

Neste dia, há 56 anos (15 de fevereiro de 1966) nas montanhas da Colômbia, o grupo guerrilheiro Exército de Libertação Nacional (ELN) sofreu um ataque do exército colombiano e logo no começo do combate foi morto entre os guerrilheiros o padre Camilo Torres, jovem de 37 anos, que há poucos meses, tinha renunciado ao exercício do ministério presbiteral na Igreja Católica, como ele afirmou, para exercê-lo na luta para transformar o seu país e o mundo. 

Neste dia em que fazemos memória do martírio de Camilo Torres, transcrevo aquí um trecho do prefácio que escrevi para o novo livro que está sendo editado no Brasil com todos os escritos de Camilo Torres: 

O profeta que queria apressar a madrugada

                 Em meio às notícias pesadas e dolorosas que assolam o Brasil, a Abya Yala, nossa pátria grande e o mundo, é uma boa nova a publicação do livro “Escritos sobre Cristianismo e Revolução” que traz para nós os escritos de Camilo Torres. É como grito de vida e de liberdade contra a ditadura do pensamento único e hegemônico e contra a necro-política que a elite escravagista nos impõe.  Essa publicação vem nos recordar que, no mais íntimo, do nosso ser, há um chamado urgente à vida que mereça plenamente este nome, à conquista dos direitos não só individuais, mas coletivos dos povos e comunidades e à defesa dos bens comuns da humanidade. (…)

No Brasil, nos anos 1980, já tínhamos podido ler e saborear os escritos de Camilo Torres, reunidos no livro Cristianismo e Revolução com belo e profundo prefácio de Dom Pedro Casaldáliga . O livro trazia os discursos do padre Camilo e sua Plataforma da Frente Unida Colombiana e era traduzido do original mexicano. Agora a coleção de discursos e escritos é mais completa e tem nova  e primorosa tradução de Yara Camillo. 

Mais de quarenta anos depois dessa edição, Camilo Torres continua sendo pouco conhecido e pouco falado no Brasil. Mesmo em ambientes de Igreja mais aberta, parece haver certo acordo de silêncio. As comunidades de base e movimentos populares celebram os irmãos e irmãs mártires da caminhada, que, desde a segunda metade dos nos anos 1960, chegam a ser milhares. No entanto, nas listas desses mártires, não é comum encontrar o nome de Camilo Torres. Como se além de ter sido excluído do ministério presbiteral e de suas funções na Igreja, Camilo ainda encontrasse medo por parte dos próprios companheiros e companheiras de caminhada em reconhecer o teor martirial da doação de sua vida. Esta publicação nova de seus escritos vem confirmar que, efetivamente, na caminhada libertadora da Igreja inserida no mundo dos pobres, Camilo Torres deve ser reconhecido como pioneiro da Teologia Latino-americana da Libertação e protomártir desse modo novo de ser Igreja.

No prefácio do primeiro livro que trazia os escritos de Camilo Torres (1981), o saudoso mestre Pedro  Casaldáliga conta que quem lhe pediu para escrever o prefácio pusera como condição: “contanto que fazer esse prefácio não o comprometa”. Essa delicadeza de amigo traduzia um cuidado em não piorar o peso da missão de Pedro, que, naqueles anos, vivia sobrecarregado e pressionado de todos os lados. No entanto, esse cuidado de não comprometer mais ainda Pedro era em relação ao profeta do Araguaia, como seria com qualquer um de nós uma cautela inútil, antes de tudo porque Camilo Torres compromete sempre e não há como não comprometer. Em segundo lugar, porque não será um prefácio a mais ou a menos que fará com que os inimigos do povo nos odeiem menos do que já demonstram. 

Em seu prefácio Pedro Casaldáliga ressalta que, poucos dias depois da morte de Camilo, “em fevereiro de 1966, um colunista do diário liberal, El Espectador, afirmava que “o jovem revolucionário morreu de excesso de idealismo” e explicava, com alívio familiar: “Seus propósitos eram tão puros, que ele nem sequer percebeu que estava agindo no país mais conservador do mundo...”. Sim, de fato, Camilo Torres vivia em um país extremamente conservador, mas também no seio de uma Igreja que, desde o século IV e quase em toda a sua história, sempre se colocou do lado dos impérios, dos colonizadores e contra a libertação das classes oprimidas. (…)

Na Colômbia dos tempos de Camilo Torres, bispos e padres podiam até perceber a iniquidade do sistema social e político dominante. No entanto, pensavam que a Igreja precisa permanecer do lado dos governantes “cristãos” para poder realizar a sua missão. De acordo com essa visão, cada vez que as pessoas vão contra os interesses dos poderosos, automaticamente se colocam contrários à Igreja e à sua missão. Em seu livro póstumo, o teólogo José Comblin recorda que, “um dia, um famoso jornalista francês, Charles Maurras, ateu, felicitava a Igreja Católica porque ela tinha conseguido extirpar do seu meio o fermento perigoso do evangelho”. O padre Comblin concluía: “Há casos nos quais a gente pode se perguntar se de fato a religião não conseguiu eliminar o próprio evangelho” . 

Na América Latina e Caribe, Camilo Torres não é o primeiro padre revolucionário. Antes dele, vários outros padres e religiosos/as lutaram pela independência dos nossos países. Alguns participaram de rebeliões libertadoras. No entanto, talvez Camilo foi o primeiro que assumiu publicamente que fazia isso em nome de sua fé e não como algo desligado do seu ministério de padre. 

(…) Atualmente, seria impossível uma Igreja, seja a Católica, seja alguma Igreja evangélica, assumir como tema de uma importante conferência nacional a relação entre Evangelho e Revolução como a Confederação Evangélica do Brasil fez em 1962 no Nordeste. No entanto, talvez, mais do que nunca, seja necessário aprofundarmos, hoje, a relação entre a espiritualidade ecumênica, cristã, inter-religiosa, ou mesmo laica e os processos revolucionários. 

(…) É urgente retomarmos a coragem de pensar nas expressões atuais que traduzem o termo “revolução”. É preciso resgatar esse conceito, hoje ainda associado por alguns grupos apenas ao ódio e à luta armada.  Caio Prado Júnior definiu a revolução como: “transformações capazes de reestruturar a vida de um país de maneira consentânea com suas necessidades mais gerais e profundas e as aspirações da grande massa de sua população que, no estado atual, não são devidamente atendidas (...) Algo que leve o país por um novo rumo” .

(…) Camilo defendia um modelo de democracia popular, participativa e social. Insistia em organizar a sociedade de um modo no qual a maioria não precisasse se submeter aos interesses dos capitalistas e o “poder real” fosse do povo organizado, e não da oligarquia. Na introdução, os organizadores do livro explicam que dividem os escritos de Camilo Torres em três partes: 

1) Sua reflexão propriamente cristã ou eclesial. 

2) Seu pensamento político

3) Seus ensaios sociológicos

(…) Para Camilo Torres, como para todas as pessoas que querem unir fé e vida esses três níveis ou esferas de reflexão e ação se entrecruzam e interpenetram. É como cidadão e militante social e político que Camilo viveu sua pertença cristã e eclesial. Assim também, a sua visão sociológica e postura política são profundamente motivadas pelo seu modo de interpretar a fé e de viver a missão. Ele escreveu claramente: “Quando vi que a caridade, o amor, para ser sincero e verdadeiro, deveria ser eficaz, compreendi que era necessário uni-lo à ciência. Por isso, me tornei sociólogo” . “...compreendi que na Colômbia jamais seria possível realizar este amor simplesmente através da beneficência, mas que era urgentemente necessária uma revolução, à qual este amor estava intimamente vinculado.” “A revolução”, repetia Camilo, “ é um imperativo cristão” .

(…) Atualmente, o papa Francisco propõe uma “Igreja em saída”, isso que compreenda a sua missão, não de forma autocentrada e autorreferente, mas como propuseram os bispos católicos latino-americanos e caribenhos em Medellín: “Que se apresente cada vez mais nítido, na América Latina, o rosto de uma Igreja autenticamente pobre, missionária e pascal, desligada de todo o poder temporal e corajosamente comprometida com a libertação de todo o ser humano e de toda a humanidade” (Medellín. 5, 15 a). 

(…) Nós, cristãos e cristãs que nos reconhecemos no modelo de Cristianismo proposto pelos bispos católicos em Medellín, somos todos e todas Camilo Torres. E devemos ser cada vez mais. 

Quem crê em Deus como Amor, sabe que se aventurar neste caminho para a libertação integral de toda humanidade e de cada ser humano é deixar-se conduzir por uma energia divina que, como diz o evangelho, “sopra onde quer, ouve-se a sua voz, mas não se sabe para onde vai nem de onde vem" (Jo 3, 8). 

A mim, cristão, este amor revolucionário é tradução de um nome que me leva ao Infinito: Jesus de Nazaré. Mas, me leva também a outros nomes que são sinônimos de amor e vida plena, nas mais diferentes religiões e nas mais diversas culturas. Que riqueza! Nenhum mortal pode amordaçar a ventania ou frear a liberdade do Espírito.  O mistério é nossa Paz e, como afirmava o presidente Hugo Chávez: “as revoluções só têm sentido se forem grandes atos de amor”. Camilo viveu e testemunhou isso e é o que canta o também mártir cantor chileno Victor Jara em sua canción para Camilo Torres : 

Donde cayó Camilo

nació una cruz,

pero no de madera

sino de luz.

 

Lo mataron cuando iba

por su fusil,

Camilo Torres muere

para vivir.

 

Cuentan que tras la bala

se oyó una voz.

Era Dios que gritaba:

¡Revolución!

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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