O projeto libertador de Jesus
Nesse 3º domingo do Ano C, o evangelho lido pelas comunidades (Lc 1, 1- 4 e 4, 14- 21) contém o prólogo do evangelho de Lucas e a primeira manifestação pública de Jesus, quando ele começa sua missão na Galileia. O prólogo do evangelho de Lucas é como uma carta que a comunidade nos anos 80 escreve para um tal de Teófilo (amado de Deus). Esse Teófilo ou Teófila somos todos nós, como pessoas e como comunidades que recebemos a boa notícia do evangelho. Como é importante que nos demos conta de sermos amados e amadas de Deus e que esse amor de Deus em nós é fonte do amor nosso dado às pessoas e na comunhão com o universo.
Lemos hoje esse prólogo porque Lucas será o evangelho que nos acompanhará em todos os domingos comuns desse ano (C). Mas, a cena que é descrita a seguir é que marca a vocação de Jesus e deveria marcar a vocação de todos nós que queremos seguir Jesus. A primeira atitude que nos vem ao coração é agradecer a comunidade de Lucas por ter nos dado essa passagem do Evangelho. Essa página é das mais conhecidas e usadas, principalmente nas Igrejas latino-americanas. É o texto do evangelho que mais animou e motivou aquilo que nos anos 70, em diversas dioceses do Brasil, chamávamos “as comunidades da caminhada”, ou o que alguns chamam de “Cristianismo da Libertação”. Sem dúvida, chamam assim porque ainda existe outro, muito espalhado por aí, que não se considera da libertação, já que separa salvação e libertação. Pensa a salvação como individual e meramente espiritualista.
Devo confessar que fui formado nessa escola de uma Igreja que dividia o material e o espiritual, embora sempre fui de uma linha política aberta e que procurava ser inserida, não ligava a política com a fé. Agradeço a Deus ter me dado como mestres o querido e saudoso Dom Helder Camara e o padre José Comblin, além de outros como o amigo Reginaldo Veloso. Tive ainda a graça de, a partir do final dos anos 70, trabalhar na Pastoral da Terra, durante anos, morar na mesma casa de Tomás Balduíno e conviver com pessoas como Pedro Casaldáliga e tantos outros irmãos e irmãs que foram me ajudando a me converter cada vez mais a esse evangelho da libertação. Com eles e elas, aprendi a encontrar na caminhada da libertação, o espírito de Pentecostes. Foi o que aconteceu com Jesus e acontece conosco. É na inserção nas lutas do povo que sou chamado a viver a mais profunda espiritualidade contemplativa. É na caminhada sócio-política libertadora, que posso dizer como Jesus: “O sopro do Senhor veio sobre mim e me enviou para libertar os oprimidos”. Com os lavradores sem-terra, os índios, os negros e todos os pequeninos de Deus, pude reaprender a ser verdadeiro monge e cada dia mais monge (muito sozinho, mas apesar disso, feliz e agradecido a tantos irmãos e irmãs da caminhada. Que maravilha, a graça de me sempre me mover amorosa e comovidamente fascinado, por encontrar o Deus vivo em cada pessoa humana, principalmente nos mais oprimidos. Quando estou com os índios, negros e lavradores sem-terra, mulheres oprimidas, me sinto mais diante do mistério divino do que quando estou diante do Santíssimo Sacramento.
Este evangelho era sempre lembrado e revivido em todas as reuniões da caminhada da Igreja com o povo lavrador e das periferias. E tinha de ser assim. De fato, este encontro na sinagoga de Nazaré é como um resumo do projeto de Jesus. No sábado, dia sagrado e consagrado, Jesus inicia sua missão, mas de forma que espanta a maioria dos seus conterrâneos.
Nazaré era um dos centros do nacionalismo judeu e ali a maioria vivia o que na época se chamava “a mentalidade zelota”, isso é, a mística revolucionária contra o império romano e contra qualquer opressor do povo.
Relendo o terceiro Isaías (61, 1ss) e unindo-o a outras profecias como Is 35, na sinagoga de Nazaré, Jesus proclama o que ele chama de “ano de graça”, isso é, um ano de Jubileu extraordinário, um tempo de libertação.
A experiência mística de Jesus o leva a, “cheio do sopro divino”, proclamar uma mudança na organização do mundo. Em Jesus, o sopro divino o impulsiona a uma vida de amor e doação aos outros: curar os doentes, libertar quem está oprimido ou prisioneiro e anunciar um ano de perdão das dívidas, devolução das terras aos antigos donos e libertação de todo tipo de escravidão. Para Lucas, essa cena na sinagoga de Nazaré é o Pentecostes de Jesus. No início da sua missão, Jesus recebe o sopro divino, assim como, nos Atos dos Apóstolos, os discípulos o receberão (At 2 e At 10).
A cena é a de um culto semanal na sinagoga de Nazaré. Jesus é convidado para fazer a segunda leitura e o comentário. Ele escolhe o texto profético do 3º Isaías. A primeira insistência do evangelho de Lucas é que ele faz isso “na força do Espírito de Deus”. É o Espírito (ou o sopro divino) que provoca a volta de Jesus para a Galileia, a pregação nas sinagogas, o entusiasmo popular com que ele é acolhido. Assim como no livro dos Atos, Pentecostes inicia um tempo novo para os discípulos de Jesus, também aqui o Espírito impulsiona Jesus para este tempo novo desde agora.
Não é por acaso que, na citação que faz do profeta Isaias, Jesus deixa de lado a referencia ao “dia da vingança do nosso Deus”. (Em Nazaré na Galileia, essa citação poderia ser interpretada em uma linha nacionalista que Jesus não quer). Ele opta só pela libertação e essa tem de ser concreta e total. Não pode ser só individual e espiritualista. É importante ouvir essa Palavra e se posicionar diante dela nesses dias do Brasil tomado por essa onda neofascista, na qual muitos cristãos e cristãs embarcaram como se Deus fosse de direita e Jesus tivesse querido fazer uma religião reacionária, moralista e aristocrática. Jesus disse que veio libertar todas as pessoas oprimidas por todos os tipos de opressão. Nós temos de segui-lo nisso, mas no Brasil de hoje, penso que temos de também libertar Deus e Jesus das gaiolas em que muitos que se dizem “cristãos e mesmo católicos” os têm aprisionado.