Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

O seguimento de Jesus nos caminhos do Bem-viver

XXIII Domingo comum C:  Lc 14, 25- 33.

Marcelo Barros

Quando lemos o texto que o lecionário nos propõe nesse 23º domingo comum C (Lucas 14, 25 – 33), a primeira coisa que chama a atenção é como, nessa passagem, a comunidade de Lucas recolhe palavras soltas que Jesus deve ter dito em circunstâncias diversas e junta essas palavras no contexto da ceia da qual Jesus participa na casa de um fariseu amigo.

Parece estranho que Jesus tenha escolhido o momento em que era bem acolhido em uma boa refeição para proferir palavras tão radicais e mesmo duras sobre as condições pesadas para quem o queira seguir. Ele adverte a quem quiser segui-lo que, para isso, tem de renunciar a tudo e assumir com ele a cruz. Não poderia haver ambiente mais estranho para tal tipo de chamado. Jesus era hóspede de uma casa na qual se comia bem e, durante a refeição, fala em sacrifício e cruz.

Talvez a relação entre essas palavras do evangelho de hoje e a ceia seja a mesma que liga a ceia da Páscoa e a cruz. Todos os evangelhos contam que, mais tarde em Jerusalém, Jesus sairá diretamente da ceia com os discípulos e discípulas para a entrega da sua vida no jardim do Getsêmani e a paixão. Então, já aqui Lucas quis ligar a ceia e o caminho para a cruz.

Nesse evangelho, Jesus faz esse chamado aos discípulos em um contexto no qual está falando a todo mundo (a multidão da qual Lucas fala desde o capítulo 12). O verso 25 diz: Muita gente o seguia. Isso significa que a Igreja não pode se separar do povo. Não deve se distanciar da humanidade. O diálogo aberto e amoroso com a humanidade faz parte essencial da missão da Igreja. Cabe a todos nós vivê-lo, principalmente na inserção com os movimentos sociais e na luta pacífica pela justiça, paz e defesa da Terra e da Vida. Um sinal dessa relação que Jesus quer entre discípulos e povo é que suas palavras terminam falando do sal. Em Mateus, ele dizia aos discípulos: Vocês são o sal da terra. Aqui, diz que o sal tem de ser misturado à terra ou à comida. Se o sal fica isolado, perde o sabor e perde a finalidade para a qual existe. O discipulado não pode se desligar da inserção no mundo.

A tradução atual dessas exigências de Jesus não é fácil. Em tempos de Cristandade, quando a Igreja se ligou ao poder e ao prestígio social e político, o risco de perseguição por parte do poder social  e político não existia. Por isso, esse evangelho passou a ser interpretado como exigência de renúncia moral e rigor espiritual. Como se carregar a cruz significasse ser capaz de fazer penitências morais pesadas. No entanto, Jesus não quer atletas. Ele precisa sim de pessoas amorosas, capazes de se doar aos outros até a doação da vida, como ele próprio fez. O que ele fez foi nos advertir de que, neste contexto do mundo em que vivemos, testemunhar o projeto divino é arriscar-se. No diário de Monsenhor Oscar Romero, lemos que, em janeiro de 1980, Romero fez um dia de retiro. Estava com medo de que as ameaças se cumprissem e ele fosse morto. E se perguntava se não deveria deixar o seu trabalho. Mas, como deixar de apoiar os lavradores e índios perseguidos? Como se proteger deixando-os entregues à própria sorte? Ele ficou e foi assassinado. Cinco anos depois, no Tocantins, a mesma coisa se repetiu com o padre Josimo Tavares, nosso companheiro na pastoral da Terra. Ameaçado de morte, ele foi aconselhado a deixar aquela região perigosa. Mas, respondeu: “E os outros ameaçados, pais de família e pessoas pobres que não têm para onde ir?”

É à luz desses testemunhos que podemos compreender o sentido desse texto do evangelho. Só quando a Igreja se insere na realidade das  comunidades indígenas, dos grupos negros, defende os direitos das mulheres e de todas as vítimas da sociedade é que essa palavra de Jesus ganha de novo atualidade e sentido. (Não basta opção preferencial). Quando se entra na radicalidade do testemunho do reino, isso é, no caminho da cruz,  além de si mesmo/a, se compromete também outras pessoas. Por isso, fica mais difícil dar o passo decisivo. Não podemos esquecer que Jesus está caminhando ao encontro da condenação à morte. Neste sentido tomar a cruz é assumir o risco da missão também na forma de viver as relações com as pessoas que a gente ama. O discípulo e discípula precisa se libertar dos laços que os/as prendem às pessoas e às coisas. Não se trata de não amar, ou de amar menos pai, mãe, filhos, irmãos. Trata-se de amar de outra forma. Amar a partir do amor de Jesus.

Essa palavra de Jesus se traduz, hoje, na proposta de vários irmãos e irmãs que buscam formar uma frente única. pela Vida (humana e do planeta). Esse projeto vai além das Igrejas e se expressa em propostas que fazem parte do caminho do Bem Viver: - no meio das lutas e das dores, suportadas na resistência, priorizar a Vida e os direitos cósmicos que abrangem os humanos e todos os seres vivos. Para isso, precisamos começar por nós mesmos, o esforço de escutar o/a outro/a e, no diálogo, ir buscando o consenso e encontrar a complementariedade nas diferenças, acolhidas e valorizadas.  

No texto de Lucas, Jesus faz ainda duas comparações. A da construção iniciada e da batalha a ser enfrentada. Ambas dizem: o discípulo ou discípula não pode se comprometer sem antes se preparar. Não pode ser imprevidente. Os profetas e profetizas têm de saber bem a que se arriscam. 

Quem conhece um pouco mais a realidade latino-americana e acompanha a reorganização dos movimentos indígenas, assim como em várias regiões o fortalecimento da luta dos quilombolas e das mulheres por sua libertação não pode deixar de ver que existem profetas e profetizas, dentro e fora das comunidades eclesiais. A profecia continua se exercendo em lutas sociais como a do MST e a dos movimentos indígenas e negros, assim como também na busca da palavra divina no cotidiano da vida.

 

No Comments Yet...

Leave a reply

Your email address will not be published.

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações