Quem acompanha a crise social e política brasileira, assim como a realidade social de países que se dizem cristãos, podem perceber que Deus tem sido sequestrado por um grupo sem escrúpulos. Há séculos, religiosos usam o nome divino a seu bel prazer e testemunham ao mundo um Deus cruel e contrário à imagem do Pai amoroso e solidário que Jesus testemunhou e com o qual a maioria das tradições religiosas concorda. O nome de Deus serviu para legitimar cruzadas, inquisições, guerras santas e conquistas violentas.
Nos anos 60, Dom Helder Camara se lamentava de que os países ricos mais responsáveis pelas desigualdades sociais do mundo se dizem cristãos. Bancos escrevem na parede o nome de Deus. Impérios imprimem em suas células de dinheiro: Nós confiamos em Deus". A um jovem que lhe disse: "Sou ateu", o bispo Pedro Casaldáliga perguntou: "De qual Deus você é ateu?". Isso nos faz compreender o cineasta Woody Allen quando afirma: "Deus deve ser um cara bom, mas parece dominado por amigos pouco recomendáveis".
Nas últimas décadas, pessoas de diversas tradições
espirituais têm se consagrado a libertar Deus dessas prisões que desfiguram o
seu nome e a sua honra. Não podemos mais aceitar ver o nome de Deus associado à
perversidade do desamor. Um dos aspectos mais tristes da atual crise brasileira
é o papel que parlamentares e hierarcas cristãos nela desempenham. É possível compreender
que proprietários de grandes empresas sejam favoráveis a leis que diminuam
direitos dos trabalhadores pobres e já explorados. Não podemos nos espantar se impérios
patrocinam golpes de Estado para garantir a manutenção da sua dominação sobre
países periféricos. Não é anormal que a embaixada norte-americana pague
brasileiros ambiciosos e sem ética, capazes de, no congresso e no governo,
servir aos interesses de seus patrões. No entanto, é difícil explicar a lógica
pela qual parlamentares que se dizem evangélicos aprovam em bloco a reforma
trabalhista que viola direitos dos pobres como a aposentadoria e torna o país
ainda mais desigual e injusto. Isso pode parecer coerente com grupos que creem: Jesus é o caminho, mas o pastor da
nossa Igreja é o pedágio. Mas, como explicar que até alguns cardeais católicos foram
vistos no palácio a visitar o presidente? Como entender que bispos que se dizem
pastores se mostram insensíveis ao sofrimento dos mais pobres, atingidos pela
medida que congela gastos sociais por 20 anos e massacrados por tantas outras medidas desse governo surreal? Diante disso,
cristãos e não cristãos podem duvidar que eles pertençam à mesma Igreja do papa
Francisco que se solidariza com sindicatos e movimentos sociais. No entanto,
junto a esses hierarcas, há grupos cristãos na contramão do evangelho, no qual
Jesus afirma: "Quero a misericórdia e não o sacrifício, ou seja, a
religião cultual" (Mt 9, 13).
No século VI, o papa Gregório Magno escrevia: "Existem dois tipos de idolatria. Uma é
adorar deuses falsos. O outro é corromper a imagem do Deus verdadeiro e adorar
o Deus Vivo de uma maneira falsa. Adora-se a Deus de forma falsa quando a
adoração não é baseada na prática da justiça e da solidariedade".
Durante a segunda guerra, em um campo de concentração
nazista, Etty Hillesum, jovem judia de 27 anos, escrevia em seu diário: "Aqui
nessa realidade terrível, descubro dentro de mim um poço muito profundo. Deus
está no fundo desse poço. Quero chegar até ele. No entanto, percebo que para
isso, preciso cavar e retirar muito lixo acumulado (lixo depositado pela
própria religião). Só após retirar muito entulho, consigo acessar esse Deus que
está no mais profundo do meu ser. Então, lhe direi: Meu Deus, nessa situação em que estamos aqui, sei que você não pode nos
ajudar. Se alguém pode ajudar o outro, serei eu que tenho de ajudar você, que
está sendo julgado mal. Eu é que tenho de ajudá-lo a não ser visto como culpado
ou envolvido de alguma forma nessa iniquidade que sofremos".
Na realidade atual brasileira, o nome de Deus tem sido
vilipendiado. Na noite da votação do impedimento da presidente na Câmara,
vários deputados foram votar com a Bíblia na mão e gritaram que votavam em nome
de Deus. Posteriormente, a imprensa noticiou que, em Nova York, quando foi à
reunião da ONU o próprio Temer declarou publicamente que a decisão de derrubar a
presidenta teve como objetivo possibilitar a aprovação das reformas econômicas
desejadas pela elite. Nesse ano, a cada votação do Congresso, a bancada que usa
o nome de Deus o faz contra o povo e contra a justiça. Da parte das Igrejas
cristãs, só uma minoria de bispos e pastores (menos de um terço do episcopado
católico do país) têm se pronunciado do lado dos pobres e dos seus direitos. Deus
precisa ter seu nome resgatado da lama em que foi jogado. Está na hora em que
cada pessoa de fé é chamada a ligar a sua espiritualidade ao compromisso de
solidariedade social. É preciso que pessoas de Deus, de qualquer religião e
quem busca uma espiritualidade e ética de amor, se unam aos movimentos sociais,
para que não prevaleça o consenso dos maus. Que, no Brasil, se possa de novo
acreditar na palavra que Deus afirmou através do profeta Miquéias: "Já te
disse o que quero de ti: é só que ponhas em prática a justiça, vivas a
solidariedade e caminhes na presença de Deus" (Mq 6, 8).