Ocupar-se do que é de Deus
Dentro dos oito dias da festa do Natal, a Igreja Católica consagra esse domingo à festa da Sagrada Família. Quando eu era criança, essa festa se dava depois da Epifania. Cresci ouvindo os padres aproveitando essa festa para falar da importância da família, os valores morais da família, de como a família de Jesus é modelo para nossas famílias e coisas assim que, pouco a pouco, descobri serem totalmente sem fundamento. A família de Jesus viveu em uma cultura social totalmente diversa e não se pode nela projetar os valores burgueses e modernos da ética familiar que a Igreja hoje defende. Além disso, mesmo no ponto de vista das relações familiares que marcam as famílias em qualquer cultura, a família de Jesus não é bem exemplo para os valores sociais vigentes. Jesus nasceu como filho natural e cuja origem os evangelhos dizem ser diferente (Maria concebeu por obra do Espírito Santo). Em uma cultura patriarcal, José é pouco citado nos textos que falam de Jesus (a tradição deduziu que ele era mais velho e teria morrido logo). E o comportamento de Jesus com os pais era singular. De um lado, o evangelho diz “lhes era submisso”. Do outro, várias vezes, parecia entrar em conflito e adulto os evangelhos contam que a família tentou prendê-lo como se ele tivesse fora de si (pensaram que estava louco) e ele disse aos discípulos: “Quem é minha mãe? (não falou do pai), quem são meus irmãos? São todas as pessoas que ouvem a Palavra de Deus e as põem em prática” (Mc 3, 21. 34).
O evangelho lido nesse domingo (Lucas 2, 41- 52) contém uma profecia da Páscoa – no terceiro dia (três dias depois os pais o reencontraram, no terceiro dia, ele ressuscitou). A cena é contada de forma simbólica. Conforme a tradição judaica, é aos 13 anos que a criança começa a participar da vida da comunidade. É quando o menino pode fazer o seu Bar-Mizvah, rito de inserção na sinagoga e na comunidade. A partir de então, a criança começa a se emancipar dos pais. Jesus se antecipa e com 12 dá um sinal de emancipação dos seus pais. Com essa idade, Jesus volta ao templo e revela que pertence ao Pai de amor (os pais humanos não podem mais resgatá-lo). Como todos os judeus, os pais de Jesus vão ao templo para oferecer sacrifícios. Jesus, não. Ele vai ao templo para “se ocupar das coisas que são do meu Pai”. A cena de Jesus, ouvindo e interrogando os “mestres” da Torá é reveladora, primeiramente de que ele se liga à tradição de Israel, se interessa por ela e quer aprender. Em nenhum momento o texto diz que ele ensinava aos doutores da lei. Diz que ele perguntava e ouvia. Sobre o que eram as perguntas? Sobre as Escrituras e a tradição judaica. E sublinha que os mestres e professores da Bíblia ficaram espantados com a inteligência das suas perguntas.
Este texto contém uma história de atmosfera dolorida e profundamente humana (os verbos gregos utilizados são “ekplesso= maravilhar-se e oudunao= estar ansioso). Conforme a comunidade de Lucas, mais uma vez, o templo é apresentado como a casa do Pai e tem muita importância na experiência de Jesus. É no templo que ele, ao se ausentar dos pais humanos, descobre e revela um outro Pai. Essa relação íntima de Jesus com Deus ainda é um mistério e mesmo as pessoas mais próximas de Jesus, Maria e José têm dificuldade de compreender o sentido do que está acontecendo.
Quantas vezes isso acontece conosco. A gente tem mais dificuldade de perceber o maravilhoso no cotidiano, quando ele ocorre em nosso cotidiano. O texto sublinha que os pais o procuram sem encontrá-lo e o encontram após três dias. Maria e José o encontram, mas não o compreendem e o repreendem com amargor. A gente sabe que, no tempo das primeiras comunidades cristãs, houve tensões e dificuldades de compreensão entre discípulos e aqueles que se chamavam “parentes” ou “irmãos” do Senhor. Essa referência a Maria e José se incluiria, talvez, nesse registro. É como se dissesse que quem procura Jesus, como se fosse com direito de parente, não o encontra profundamente. Na segunda carta aos coríntios, Paulo escreve: “Mesmo que tivéssemos conhecido Jesus conforme a carne, (ou segundo as aparências), agora já não o conhecemos assim. Se alguém é de Cristo, tem de ser uma nova criatura” (2 Cor 5, 16). Isso quer dizer que, para se encontrar Jesus, a pessoa tem de procurar de um modo novo e que não pode ser “do jeito da carne, isto é, de forma egoísta ou por interesses que não são os de Deus. É a primeira vez que o evangelho fala em uma atitude independente e consciente de Jesus. Como se, com um só gesto simbólico, o adolescente Jesus cortasse o absoluto dos vínculos familiares. Ele não corta os laços afetivos. Tanto que o evangelho termina dizendo que ele voltou com eles a Nazaré e lhes era submisso. Mas, no templo, aqui chamado de “casa do meu Pai”,ele antecipa as futuras discussões com os doutores da lei. Mas, agora, ele interroga e põe questões.
Sua resposta aos pais é até hoje muito interpeladora: “Não sabeis que eu devo me ocupar daquilo que é do meu Pai?”. Os pais não compreenderam do que ele estava falando. Penso que até hoje temos dificuldade de compreender. Na época em que Lucas escreveu esse evangelho, o templo de Jerusalém já não existia mais. Então, se ele fez Jesus aos 12 anos dizer aos pais que deveria se ocupar das coisas que são do meu Pai, não podia se referir nem ao templo nem em si às tradições religiosas sobre as quais ele tinha interrogado os doutores da lei. A preocupação dele (devo me ocupar – o é preciso ou devo é o mesmo usado para a missão de salvar o mundo – era preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória. É o mesmo é preciso – devo). Trata-se da preocupação de ligar a fé, a espiritualidade, as tradições bíblicas com a realidade do mundo e sua libertação, ou seja, o projeto que Deus tem para o mundo. Hoje se quisermos ser discípulos de Jesus temos de compreender que, para nós, a sagrada família é toda família humana, de todos os modos e configurações que essa família tomar e de forma que toda pessoa humana se torne como familiar e mais do que se fosse nosso sangue. Isso não é natural. Não é instintivo. Por isso, é difícil. Nem significa em si desprezar ou diminuir o valor dos laços familiares. Ao contrário, como afirma a Regra de Taizé para os irmãos da comunidade: “a qualidade do seu amor a seus pais e familiares revela a profundidade do seu amor a todas as pessoas”. É isso. O amor aos mais íntimos abre e nos ajuda a viver o amor de forma mais universal e mais profundo possível. Jesus fala da “casa do meu Pai”. Essa casa de Deus não é o templo, seja de que religião for. É o planeta Terra, nossa casa comum e templo da morada divina. E aquilo que é do meu Pai é a realidade de um mundo no qual Jesus e agora nós temos de trazer o projeto ou o programa que Deus tem para a humanidade e o universo.
Pessoalmente esse evangelho me confirma no caminho do aprofundamento de uma espiritualidade sócio-política libertadora. A fé tem de ser interior (Maria guardava essas coisas no seu coração, isso é, cultivava a esperança messiânica no íntimo do ser), mas se expressa no social e para uma transformação de nós mesmos e do mundo.