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Oitava do Natal - A Palavra Divina se faz carne em nossas coletividades

Oitava do Natal 

(Festa de Maria Mãe de Deus) – Lc 2, 16-21

Marcelo Barros


Na Liturgia deste tempo de Natal, se repete muito esta palavra do Evangelho: “A Palavra se fez carne e armou sua tenda no meio de nós” (Jo 1, 14). É o evangelho lido durante o dia 31 de dezembro. É o nosso modo de reconhecer a presença divina na pessoa do homem Jesus de Nazaré.

Dom Pedro Casaldáliga pedia para que alargássemos o mais possível a compreensão dessa verdade de fé. Ele afirmava: “O Verbo se fez índio”. “O Verbo se fez carpinteiro na oficina de José”. Isso significa que o Cristo, como Palavra de Deus assume nossas realidades, nossas famílias, nossas culturas.

Até que ponto, você que está lendo essas linhas acredita profundamente nisso?

O nosso irmão e companheiro de comunidade Gildo Xucuru nos diz que, nestes primeiros dias do ano novo, os sábios do povo Xucuru costumam ir para a serra sagrada do Ororubá (município de Pesqueira, PE). Na montanha, passam uma noite em vigília à espera do amanhecer. Quando, no horizonte, aparece a primeira barra do dia, ao olharem o céu, dizem algo sobre o ano novo que se está iniciando. Ali, em sua sabedoria ancestral, ouvem a voz da natureza e reconhecem nela uma revelação divina sobre a vida para este ano novo.

Você interpreta isso como simples costume folclórico ou aceita como instrumento através do qual o Amor Divino fala a cada cultura? Aqui fica o convite para acolhermos as sabedorias ancestrais como expressões da encarnação do Verbo Divino que continua se fazendo carne entre nós.

Neste primeiro dia do ano, as Igrejas antigas celebram o oitavo dia da festa do Natal quando a tradição recorda a circuncisão, rito no qual, com oito dias de nascido, o menino recebe oficialmente o nome de Jesus. A partir de uma tradição antiga, a Igreja Católica dedica este dia a Maria, mãe de Jesus. De fato, independentemente dos conflitos dogmáticos de cultura grega que criaram este conceito da “Mãe de Deus”, é bom pensar que Deus se humaniza a tal ponto de ser como qualquer um de nós que teve ou tem mãe.  

Contemplar em Maria, a mãe de Jesus é ver nela a imagem de toda comunidade de fé que gera Cristo em nós. Se não fosse Maria, não teríamos Jesus que nasceu de Maria. Se não fosse a comunidade de fé (a nossa comunidade), Jesus não é gerado em nós, em nossas vidas e nossa missão.

De acordo com o lecionário ecumênico, o evangelho lido nas comunidades é Lucas 2, 16- 21. Começa pelas palavras “Quando os anjos se afastaram, os pastores disseram uns aos outros: Vamos a Belém para ver o que aconteceu”. Parece final de festa. O extraordinário passou e agora se trata de ver a realidade. Os pastores ouviram uma palavra maravilhosa de promessa de salvação. Foram a Belém, mas o que encontraram ali foi uma realidade muito simples, muito pobre e sob certo ponto de vista decepcionante. O desafio foi ver aquela família pobre e sem teto e ver ali o começo da realização de um projeto maravilhoso de Deus. 

Em nossas vidas, muitas vezes, é preciso que também os anjos tenham se afastado. Às vezes, ao ver e ouvir pessoas religiosas, temos a impressão de que vivem sempre na presença de anjos. Não se dão conta de que, no mundo em que vivemos e na cultura em que estamos, os anjos se foram embora. A missão nos envia à inserção no meio do povo, sem anjos nem sinais do céu. Só mesmo a abertura para ver a presença e atuação do amor divino no meio da vida como ela é...

Este evangelho é praticamente o mesmo lido nas celebrações da aurora e da manhã do dia 25, tenho apenas acrescentado o verso 21: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido”.

Sabemos que o rito da circuncisão está ligado a culturas patriarcais. Consideramos a chamada circuncisão das meninas uma crueldade ainda mais violenta contra a mulher e o seu corpo. No entanto, o sentido original do rito nos ensina que, desde muito crianças,  somos tocados no que há de mais íntimo de nós mesmos, na própria identidade sexual, de modo que todo o nosso ser e nosso corpo entrem em sintonia com o mais profundo do nosso projeto de vida. Ao lembrar a circuncisão de Jesus em seu oitavo dia de vida, podemos dar graças ao ver como Deus assume a cultura humana de um povo, mesmo com seus aspectos culturais que podemos criticar (como o patriarcalismo ou o machismo). 

Ao dizer que aos oito dias de nascido, Jesus foi circuncidado, o Evangelho mostra que ele se inseriu plenamente na cultura do seu povo. Ao inserir-se na cultura coletiva e pertencer ao povo judeu, ele assume seus valores e também suas limitações e lacunas. E é neste processo de inserção cultural e histórica que recebe o nome de Jesus. Ieoshuá significa “Deus é Salvação”. Hoje podemos traduzir o nome de Jesus como “Deus Amor é Libertação e Bem-viver”. E a própria vida de Jesus tornou sempre verdadeiro o nome que lhe foi dado como missão. 

Hoje vivemos em um mundo no qual muita gente que diz ter fé testemunha um Deus patriarcal, violento, cruel e exclusivista, ou seja, amigos dos que lhe obedecem e inimigo dos que não seguem a lei que Ele, Deus teria imposto. Cada vez mais é preciso, seja em que religião nos situarmos, deixar claro que se cremos em Deus só pode ser um Deus que só possa amar e se é Deus nunca possa ser fonte de ódio, intolerância e exclusivismo. O irmão Roger Schutz dizia: Deus só pode amar.

De acordo com o evangelho, essa foi a missão de Jesus. Testemunhar isso seja a nossa missão neste ano novo. Há mais de 50 anos, os papas consagram o 1º de janeiro como “dia mundial da Paz”. Neste ano de 2023, a mensagem do papa Francisco para este dia tem como tema: “NINGUÉM PODE SALVAR-SE SOZINHO. JUNTOS, RECOMECEMOS A PARTIR DA COVID-19 A TRAÇAR CAMINHOS DE PAZ. Ao contemplar Maria como mãe de Jesus deixemos que, assim como este evangelho diz, também nós, como Maria, “guardemos todas essas coisas, meditando-as no coração”(v. 19).  Comecemos este ano novo com uma prece da espiritualidade indígena: “Ao despertar para um novo dia ou iniciar um caminho novo,

 olhamos para o Avô Sol  e para o Espírito presente

em todo o mundo que nos rodeia.

Não o vemos, mas cremos

que ele está ali e quer tomar conta de tudo,

através do comportamento certo que nos inspira.

 

Se trilhamos pelo lado certo do bem e do amor,

somos como os braços e as pernas do Espírito que nos move

e vai mexendo com a gente para o lado bom,

sem nem a gente notar”

(Testemunho de um velho cacique Kayapó). 

 

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Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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