XXIX Domingo comum C: Lc 18, 1- 8.
À primeira vista, parece uma afirmação fora de contexto. De fato, se liga com a pergunta que, no capítulo anterior, os discípulos tinham feito sobre a vinda do Filho do Homem (Lc 17, 22- 37). Tanto ali como aqui, Jesus subtende a fé como adesão pessoal e comunitária ao projeto divino de transformar esse mundo. Jesus identifica a fé e a oração com a busca da justiça. Não podia ser de outro modo, porque ele foi formado na tradição bíblica. Ali o livro dos salmos, que é a escola de oração do povo bíblico, começa com o salmo 1, dizendo: “Abençoado quem vive a lei de Deus e pratica a justiça”. Essa é a base, o alicerce para a oração bíblica. Oração não baseada na justiça é idolatria. Como diz o livro do Eclesiástico: “Deus não se deixa corromper por propina ou suborno. Oração desligada da prática da justiça é ofensa a Deus, porque é como matar ou maltratar um filho, pensando, assim, agradar ao pai” (Eclo 34, 18- 21).
Em Ex 3,7-9, texto fundante da experiência de libertação do povo escravizado no Egito, se diz que “O Deus de Amor ouviu o CLAMOR do povo escravizado...”
Jesus contou a história de uma viúva pobre e indefesa que clamava por justiça, mas no lugar onde morava, o juiz da região se parecia com vários dos juízes atuais que são insensíveis aos apelos do povo injustiçado, ou com políticos que, no Congresso Nacional, nas assembleias legislativas estaduais e nas câmaras municipais são apresentados como “terrivelmente” evangélicos ou católicos. No Congresso, formam a chamada “bancada da Bíblia”, que é, ao mesmo tempo, bancada do boi e, quase sempre, bancada da bala e dos ricaços. Em Belo Horizonte, nesses dias, uma Igreja evangélica entrou com pedido ao Banco Central para abrir um banco. Também na Igreja Católica, sempre precisamos de novo lembrar: para a Bíblia e para Jesus, não pode existir oração desligada da busca da justiça não apenas legal, mas justiça libertadora das opressões que o povo empobrecido sofre.
Na parábola que conta, Jesus deixa claro que o tal juiz era um homem injusto e sem sensibilidade humana. Jesus argumentou que, se mesmo um juiz como aquele, injusto e insensível, acabava cedendo e fazia justiça para se ver livre da viúva que o importunava, quanto mais Deus fará justiça às pessoas injustiçadas, prediletas de Deus que é amor e justiça.
O risco dessa parábola é achar que Jesus comparou Deus com um juiz insensível à injustiça. No capítulo 11 do Evangelho de Lucas, ele já tinha contado a história do amigo que atende ao outro que lhe pede um pedaço de pão só para não ser mais incomodado. Agora, Jesus diz o mesmo que tinha dito antes: “Se vocês que são maus, sabem dar coisas boas aos seus filhos, quanto mais o Pai do céu lhes dará o Espírito Santo...” (Lc 11, 13). Só que, desta vez, Jesus passa do tema da oração ao da justiça: “Deus não faria justiça aos seus escolhidos?”. Detalhe: conforme o evangelho, “escolhidas” por Deus não é uma nação, uma etnia, mas todas as pessoas injustiçadas de qualquer povo. O que a viúva pede insistentemente é justiça. O que Jesus promete que Deus dará é justiça.
As comunidades do Evangelho de Lucas que lidam com o aparente atraso da vinda do Senhor recebem aí a resposta de Jesus: é preciso não desanimar sempre em nossa esperança. É claro que isso não “desculpa” Deus, nem explica porque Ele permite tanto sofrimento e tantas injustiças no mundo. Por que Deus parece mudo e impotente diante de calamidades que atingem a humanidade, principalmente, a parte mais pobre? Talvez, nessa perspectiva, nossa oração não seja apenas o grito da pessoa que sofre e clama por justiça, mas pode significar também o protesto e a teimosia em nos manter na confiança diante dos silêncios de Deus.
Há pessoas que confundem oração com repetição de rezas. Essas podem ser válidas como método, mas a oração é o estado de comunhão com Deus. Se duas pessoas estão apaixonadas, há uma sintonia que faz com que, em todos os momentos da vida e não só quando estão juntas, as pessoas se sentem em sintonia. Na relação com Deus, esse estado interior de apaixonamento é a oração. Como não é algo espontâneo, já que Deus não é alguém visível, as orações podem ser um bom método para nos fazer viver esse estado de oração. Santa Tereza de Ávila afirmava: “Orar não é pensar muito. É amar muito”.
Um dos pontos mais discutidos no Brasil de hoje é a relação entre Política e Religião. Para ganhar eleição, políticos profissionais se apresentam como religiosos. Muita gente tem como critério para votar em candidato ligado à Igreja. Há quem sonhe com um Brasil evangélico, ou um país pentecostal, como há pessoas, até padres e bispos que desejam voltar aos tempos da Cristandade católico-romana. Tanto uns, como os outros, confundem a construção da pátria com a volta de uma religião institucional dominadora, que usa o nome de Deus para manter o mundo injusto e desigual. Quem vota em alguém por ser religioso trai a sua fé, já que, conforme esse evangelho, o projeto divino é a justiça e não o culto. Esse evangelho confirma que a fé tem dimensão social e política. O mundo não pode ser pensado como uma grande paróquia ou congregação. A missão da fé é transformar a sociedade a partir da justiça e do cuidado com todos os seres humanos, com a terra e a natureza.
Para nós, o que essa parábola pode dizer é que Deus não pode ser tapa-buraco das nossas necessidades e carências. Para ser como Jesus nos ensina, a oração deve se situar na expectativa do reino divino que vem. No fundo, toda nossa oração se insere no espírito e no âmbito da súplica do Pai Nosso: “Venha a nós o teu Reino!”
Durante a segunda guerra, em um campo de concentração nazista, Etty Hillesum, jovem judia de 27 anos, escrevia em seu diário: "Aqui nessa realidade terrível, descubro dentro de mim um poço muito profundo. Deus está no fundo desse poço. Quero chegar até ele. No entanto, percebo que para isso, preciso cavar e retirar muito lixo acumulado (lixo depositado pela própria religião). Só após retirar muito entulho, consigo acessar esse Deus que está no mais profundo do meu ser. Então, lhe direi: Meu Deus, nessa situação em que estamos aqui, sei que você não pode nos ajudar. Se alguém pode ajudar o outro, serei eu que tenho de ajudar você, que está sendo julgado mal. Eu é que tenho de ajudá-lo a não ser visto como culpado ou envolvido de alguma forma nessa iniquidade que sofremos".