Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Orar não por eles e elas, mas junto com eles e elas.

Nossas (os) ancestrais e todas as santas e santos de Deus

(Orar, não a eles e elas, ou por eles e elas e sim com eles e elas).

 

Desde séculos antigos, a Igreja Católica celebra no dia 1º de novembro a festa de todos os santos e santas de Deus e no dia 2, hoje, a comemoração de todos os nossos irmãos e irmãs falecidos. 

A sociedade contemporânea tem muita dificuldade de lidar com a morte. A visão mecanicista da vida faz com que se tente esconder e disfarçar o medo da morte. No entanto, seja como for, a morte faz parte do processo da vida. As culturas originárias valorizam ritos de despedida. Assumem o luto e a saudade. Ensinam-nos a viver esse processo comunitariamente. No Mato Grosso, o povo Bororo celebra o funeral durante 30 dias. Assim, as pessoas vivas convivem com a que morreu. No Candomblé, o Axexê, cerimônia feita quando morre algum membro da comunidade, é das mais importantes da religião dos Orixás. 

               Desde tempos ancestrais, as culturas do Norte celebram no dia 1 de novembro o Dia das Bruxas ou o Halloween. No México, no tempo dos Aztecas, no dia 2 de novembro. Celebrava-se Mictlantecuhtli, o deus da passagem para o reino da morte. Até hoje, os mexicanos fazem em torno a esse dia, uma grande festa na qual convivem com as pessoas falecidas da família. Em outros lugares, a comemoração de todos os santos e santas, assim como a memória dos defuntos tem sua origem nas celebrações à Mãe Terra. 

A cristianização dessas tradições criaram o costume de rezar pelas pessoas que partiram. No entanto, o sentido mais profundo dessa celebração é recordar  a Santidade Divina que marca a vida de todos/todas nós e nos liga a nossos/as ancestrais. Se Deus é Amor, salva a todas as pessoas de graça e não precisa que lhe peçamos para ser bom com nossos (as) parentes que faleceram. Deus é Bondade, Amor e Salvação. Fazemos memória dos irmãos e irmãs que faleceram, não para orar por eles e elas, mas para orar com eles e elas. É um dia de aprofundamento da comunhão que nos une às pessoas que partiram. 

Cada tradição espiritual tem seu jeito de entrar em comunhão com os ancestrais e receber deles a energia espiritual para enfrentarmos os desafios da vida. Na fé cristã, cremos na comunhão dos santos e santas de Deus. Isso significa que há profunda unidade entre as pessoas vivas e as que já partiram. Nessa comunhão, somos abençoados e abençoadas pela energia amorosa que recebemos dos ancestrais. O apóstolo Paulo escreveu: “Nem a morte, nem a vida, nada nos separará do amor de Deus que está em Cristo Jesus” (Rm 8, 38). 

Neste dia, a liturgia nos propõe a escolha entre vários textos do evangelho. Aqui escolhemos Mateus 5, 1 – 12; texto escolhido para a liturgia de ontem (1 de novembro) e que serve bem para o dia de ontem, quando recordávamos a comunhão dos santos e santas do céu e para hoje, a memória dos irmãos e irmãs falecidos, nossos ancestrais na vida e na fé. Mesmo nas comunidades cristãs, ainda persiste uma concepção de santidade desligada do cotidiano. Conforme essa concepção, alguém é considerado santo ou santa quando é diferente de todo mundo e parece sem defeitos. Não é essa a concepção bíblica e dos evangelhos. Na Bíblia, só Deus é Santo e tem o sentido de “totalmente outro”, ou seja, transcendente. Mas, o livro do Levítico repete o mandamento divino: “Sejam santos, porque Eu sou santo” (Lv 11, 44; 19, 1). Ser santo e santa tornou-se um modo de dizer que a pessoa é consagrada. Pertence a Deus. 

Nas primeiras comunidades de discípulos e discípulas de Jesus, fundadas pelo apóstolo Paulo, ele chamava a todos e todas de santos e santas, porque, pelo batismo, todos e todas recebem o Espírito e, por isso, somos todos e todas santificados/as. No discurso da montanha, Mateus diz que Jesus pedia: “Sejam perfeitos/as, como o Pai do céu é perfeito” (Mt 5, 47). Lucas preferiu traduzir: “Sejam misericordiosos/as, como o Pai do céu é misericordioso” (Lc 3, 36). 

O evangelho de hoje traduz isso nas bem-aventuranças proclamadas por Jesus. Ao proclamar abençoadas de Deus e vistas por Deus como benditas as pessoas pobres de coração, as que sofrem, as que o mundo considera sem importância e as perseguidas por causa da justiça, Jesus revela que a santidade não é algo que acontece, somente, dentro das Igrejas. A festa de hoje nos convida a reconhecer e honrar a santidade em todas as tradições espirituais e mesmo fora do mundo das religiões. Em todos os lugares e culturas, existem pessoas admiráveis que se deixam mover pelo Espírito e expressam o Amor Divino, sem ser, necessariamente, religiosas. 

A santidade proclamada nas bem-aventuranças não é virtude moral. É a boa notícia de que as pessoas e comunidades empobrecidas podem se alegrar, porque o reino de Deus está chegando e elas vão deixar de ser empobrecidas. As que choram, vão deixar de chorar e as que têm fome, serão saciadas. De graça, Deus lhes promete a inversão das situações dolorosas em que vivem. Em nossos dias, essas bem-aventuranças de Jesus se estendem às multidões de pessoas migrantes e refugiadas que são hostilizadas nas ilhas de riqueza e bem-estar do mundo, às pessoas vítimas do genocídio na Palestina e que sofrem nas mais de 50 guerras que as indústrias de armas e o colonialismo imperial sustentam no mundo, além é claro, das que sofrem a violência de cada dia nas esquinas e portas de nossas cidades. 

Ao apresentar as bem-aventuranças, Jesus as revelou como caminhos possíveis da graça divina. A pobreza como miséria nunca é graça divina, mas assumi-la comunitariamente para dela se libertar é um caminho de bem-aventurança. Quem convive diariamente com pessoas em situação de rua, ou com pessoas com deficiência física ou mental descobre a felicidade que consiste em viver o amor solidário. 


Atualmente, a teologia latino-americana nos propõe: Junto com os pobres, contra a pobreza injusta. Deus não quer o choro, a fome e a perseguição. Quer nos dar força para juntos sairmos dessas situações e vivermos a alegria, em Deus e com Deus. A santidade consiste em nos deixar cada vez mais conduzir pelo Espírito. Nesse dia em que comemoramos os irmãos e irmãs que já partiram, recordemos afetivamente o seu convívio e que a herança afetiva que recebemos deles e delas nos façam conviver melhor com as pessoas vivas e sermos pessoas de amor e que testemunham para todos e todas as bem-aventuranças de Jesus, valorizando as pessoas que, hoje, vivem essas situações que Jesus apontou e nas quais o Amor Divino quer mostrar sua preferência. 

 

“Quando eu estiver triste

Simplesmente me abrace.

 Quando eu estiver louco

Subitamente se afaste.

 Quando eu estiver fogo

Simplesmente se encaixe.

E quando eu estiver bobo

Sutilmente disfarce.

 Mas quando eu estiver morto

Suplico que não me mate

de dentro de si...” (Nando Reis). 

 

https://youtu.be/Y-EqN6I6ES8?si=RKKS9FfEa_WrS29k

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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