As religiões e o Fascismo
Um jovem procurou o bispo Pedro Casaldáliga e lhe disse: “Eu sou ateu”. O bispo lhe perguntou: “De que Deus, você é ateu?”.
No século VI, o papa Gregório afirmava que conhecia dois tipos de idolatria: a mais banal era adorar a deuses falsos (adorar animais, plantas, estátuas, etc). A outra forma de idolatria é mais sofisticada e, entretanto, cotidiana na prática religiosa. Consiste em adorar o Deus verdadeiro de uma maneira falsa. Quando se usa a imagem de Deus para legitimar poder é idolatria. Quem faz isso transforma o Deus do evangelho em demônio. Quando se usa Deus para fazer medo, para oprimir as pessoas em sua consciência, se faz de Deus um ídolo. Quando se usa Deus para seus interesses pessoais ou grupais, se cai nessa idolatria. Infelizmente, na história, todas as Igrejas cristãs fizeram isso, porque Jesus não quis organizar uma religião. Jesus quis propor uma onda de amor e justiça que transformasse o mundo no que ele chamava de “reino de Deus”. Mas, os discípulos que já quando Jesus estava com eles viviam preocupados com o poder e o prestígio, fizeram das comunidades uma religião (ou várias de acordo com as Igrejas diferentes) e para se implantar no mundo, se aliaram a impérios. Para serem aceitas pelos poderosos, foram coniventes com a escravidão. Em nome de Deus legitimaram o domínio do homem sobre a mulher. Usaram o nome de Deus para pedir ao povo dinheiro e poder para padres e pastores. E para dar a toda essa podridão uma aparência de santidade, inventaram cultos, transformaram os gestos de amor que Jesus fez em rituais de tipo cerimônias solenes e até da refeição de partilha que ele propôs eles fizeram um sacrifício ritual como se Deus quisesse sacrifícios. No primeiro testamento, Deus disse, através do profeta Oseias e, no evangelho, Jesus reafirmou: “Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios”. Inútil. Os religiosos, pastores e padres, bispos e homens de Deus fizeram o contrário. E inventaram muitas regras, muitas normas, muitas leis para dar à religião que eles criaram uma aparência de coisa séria e rígida.
Essa corrupção já ocorreu quando, no século XI antes de Cristo, os sacerdotes do templo e o rei Salomão construíram o templo de Jerusalém. Até então, conforme a Bíblia, Deus se tinha revelado no deserto, em meio à caminhada do povo hebreu. Deu ao povo a sua lei, o seu projeto libertador, em meio ao fogo de um espinheiro ardente. E sempre quis dar um sinal de sua presença no meio do povo revelando sua presença (sua glória) no mesmo tipo de barraca (tenda) na qual o povo nômade vivia. Ao construir o templo, os sacerdotes copiaram as religiões de seus vizinhos e transformaram o projeto divino da aliança em uma estrutura especificamente religiosa. Reproduziram os mesmos tipos de cultos sangrentos com sacrifícios de animais que os cananeus faziam, só que agora oferecidos ao Deus da aliança que nunca pediu nem quis isso.
Assim aprisionaram a Deus em leis cultuais, em exigências de tributos e tabus que dividiam (e até hoje discriminam) as pessoas em puras e impuras, religiosas e profanas, abençoadas e outras abandonadas por Deus e pela religião. Na Bíblia, durante todo o tempo, os profetas denunciaram essa religião dos sacerdotes. Protestaram que Deus chama o povo a viver a fé baseada na justiça e no cuidado da vida dos pobres. Jesus entrou nesse mesmo caminho. Conforme os evangelhos, quando ia ao templo era para exercer a profecia (ensinar) e não para oferecer sacrifícios rituais. Revelou aos discípulos que Deus é Pai (Abba: paizinho) e não um Deus todo-poderoso. Ensinou-os a orar diariamente: Pai Nosso, venha a nós o teu reino (isso é, o teu projeto de um mundo novo). Por isso, ele foi perseguido pelos religiosos da sua religião e foi entregue aos romanos pelos sacerdotes que pediam: Crucifica-o!, Crucifica-o!.
Hoje, muitos pastores evangélicos e ministros (padres e bispos) católicos gritam a mesma coisa contra as pessoas que não se adequam às normas vigentes de suas instituições. Na sua história, muitas vezes, as Igrejas cristãs substituíram a religião do templo, mas a mantiveram praticamente igual. Aprimoraram belos rituais baseados no poder sagrado, mas sem relação com a justiça e o direito. Durante séculos, quase todas as Igrejas, inclusive a Católica, aceitaram a escravidão, legitimaram guerras de conquista e a colonização para se expandir e para ter do seu lado o poder político, sempre acreditando estar com isso agradando a Deus.
O Concílio Vaticano II veio propor uma mudança nesse projeto. Embora muitos bispos e padres ainda pensem e se comportem assim, essa não é mais a postura oficial da Igreja. Infelizmente, grupos pentecostais herdaram da velha Cristandade o que ela tinha de pior. Agora têm como projeto criar um Brasil pentecostal. A coalizão da extrema direita se declara “Por Deus”. É esse projeto que está por trás do tal templo de Salomão que Edir Macedo reconstruiu em São Paulo. É o que está por trás da espiritualidade de vários grupos religiosos evangélicos, mas também católicos. E de algumas emissoras de rádio e televisão religiosas. É essa a onda religiosa dita cristã que vota na extrema direita e compactua com a propaganda do ódio, da intolerância e da violência como solução para o Brasil. Como fizeram na época em que apoiaram o golpe militar e a ditadura de 1964, continuam usando o discurso ridículo da corrupção da esquerda para dizer que tem de mudar tudo, sem perceber que a raiz da corrupção é um sistema econômico no qual cinco brasileiros possuem o equivalente à renda da metade de toda a população brasileira (dados do IBGE, 2018). Eles se levantam contra qualquer pessoa que aceite discutir o problema do aborto terapêutico ou diga que as pessoas do mesmo sexo têm direito à união estável (não é nada de casamento religioso ou oficial). No entanto, pouco se preocupam se diariamente ainda morrem jovens negros e pobres nas periferias de nossa cidade assassinados por essa polícia que o candidato de direita quer reforçar. Pouco se preocupam com a multidão passando fome e com os povos indígenas sendo exterminados (mais de 40 lideranças assassinadas do ano passado para cá). E o povo idiota e lobotomizado, inclusive mesmo pessoas de nossas famílias e de nossas relações não ligam para isso. A pessoa passa fome mas entrega o seu dízimo ao pastor que tem avião, casas aqui e em Miami e vive como príncipe. Em nome de Deus. (Na Igreja Católica, já em sua época, Dom Helder Camara propunha que o Vaticano e seus tesouros fossem entregues à ONU, a serviço da paz e da justiça no mundo).
Foi esse tipo de religião desumana e cruel que entregou Jesus à morte. Foram esses religiosos que, de acordo com o livro dos Atos dos Apóstolos (capítulo 7), apedrejaram o diácono Estêvão acusando-o de ter blasfemado contra o templo (contra a religião). Foram eles que mataram nas inquisições e cruzadas, tanto católicas como também protestantes, milhares de pessoas em nome de Deus e chamavam isso “auto de fé”. O poder idolatrado que se traveste de deus é pior do que as ditaduras sanguinárias do mundo porque oprimem a partir da consciência e do mais profundo do interior humano.
É preciso retomar o espírito do Evangelho e ter coragem de rejeitar essa imagem de um deus poderoso e cruel e testemunhar que Deus só pode amar e não quer um mundo religioso e sim um mundo justo e fraterno, de paz, justiça e comunhão com a Terra e a natureza.
Na exortação apostólica sobre a alegria do Evangelho, o papa Francisco afirma: “A proposta do evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma “caridade por receita”, uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o reino de Deus. Trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. (...) O projeto de Jesus é instaurar o Reino do seu Pai: por isso, pede aos seus discípulos: Proclamai que o Reino do céu está perto.” (E. G. 180).