No Brasil, em uma semana,
tivemos o martírio de três pessoas ligadas aos movimentos sociais. Na noite da
4a feira, 14, no centro do Rio de Janeiro, foram assassinados a vereadora
Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes. Três dias antes, no Pará, mataram
o militante social Pedro Sérgio Almeida, representante da Associação dos
Caboclos e Quilombolas da Amazônia. Ele cobrava da prefeitura de Macarema a
falta de licença ambiental da empresa Hydro que joga detritos nos rios do Pará.
Vivemos em tempo de
martírio. Defender o projeto da Justiça e lutar pela Vida significa correr
riscos e enfrentar a morte. Quem é cristão não pode deixar de ligar essas
mortes violentas que acontecem cada dia ao martírio de Jesus que, nas suas
liturgias, as Igrejas celebram.
Não deixa de ser estranho:
as Igrejas afirmam que, em cada eucaristia, atualizam a doação de Jesus em sua
cruz. No entanto, ao menos nos dias atuais, quem parece estar realmente vivendo
a paixão e seguindo os passos de Jesus no seu testemunho de dar a vida pelos
outros, parece não ser tanto religiosos/as ou pessoas que dizem fazer isso por
causa da fé. Na América Latina, dos anos 60 até os anos 90, milhares de pessoas
deram a vida por causa da justiça, em meio às lutas sociais. Dessas, muitas se
proclamavam cristãs. No dia 24 de março, celebramos a memória do martírio do
bispo Oscar Romero, assassinado em El Salvador, no momento em que celebrava a ceia
de Jesus. Nos anos mais recentes, esse tipo de martírio continuou ocorrendo e acontece
até hoje. Diariamente, há pessoas que morrem como vítimas da injustiças
estruturais que dominam o mundo e esse continente. São mártires. No entanto,
parece que, atualmente, o martírio está acontecendo mais fora dos ambientes eclesiais.
Isso não diminui em nada o mérito e a santidade desses irmãos e irmãs que,
mesmo sem terem vinculação com a fé religiosa, dão a vida pelas causas da
justiça e da libertação. Conforme o evangelho, Jesus afirmava que pertence a
Deus não quem confessa o seu nome e sim quem realiza a sua vontade que é de
justiça e vida para todos.
Lamentável é que as Igrejas
celebram e pregam a doação da vida, mas ainda parecem distantes dessa
consagração que tantas pessoas sem falar em Deus, vivem no dia a dia da vida, nas
periferias urbanas, na luta das mulheres negras, na causa dos povos indígenas e
na defesa das águas e dos rios. Do mesmo
modo, é estranho que os irmãos e irmãs que, por causa de sua fé, nas últimas
décadas, deram a vida pelo povo e pela justiça, muitas vezes, não contaram com
o apoio e compreensão dos próprios pastores da Igreja. Mesmo Dom Oscar Romero
não era bem compreendido por outros bispos e pelo Vaticano. Isso nos faz
perguntar por que a Igreja que celebra a paixão de Jesus tem tanta dificuldade
em se solidarizar e se inserir no martírio real que o povo sofre a cada dia,
martírio que, na época de Jesus, se concretizou na cruz na qual o nosso mestre
e Senhor deu a sua vida. Em primeiro lugar, essa interpelação toca no mais
profundo de cada um de nós. Fere o meu coração como uma espada de dor e que
chama a conversão minha e da nossa Igreja. Eu mesmo, nós, o que estamos
fazendo? Será que esse distanciamento da vida real das lutas do povo, por parte
de muitos eclesiásticos, vem do fato de que a teologia oficial das Igrejas
ainda compreende a cruz e a morte de Jesus como um sacrifício religioso
oferecido a Deus para salvar as pessoas dos seus pecados? Geralmente, todos aceitam
que a Páscoa do primeiro testamento foi de conteúdo claramente social e
político (a libertação dos hebreus do Egito). No entanto, interpretam a Páscoa
de Jesus no plano meramente espiritualista. Cristo é visto como o servo
sofredor de Deus que, como dizia o profeta Isaías, tomou sobre si as nossas faltas e morreu por nossos pecados. É o Cordeiro
de Deus, cordeiro da nova Páscoa que, por sua morte, nos liberta
espiritualmente.
Até hoje, na maioria das
Igrejas, padres e pastores ligam o motor automático e, a cada ano, repetem o
mesmo discurso. No entanto, atualmente, essa forma de interpretar a fé corre o
risco de apresentar Deus como uma divindade cruel que, para se reconciliar com
o mundo, precisa da morte do seu próprio Filho. Além disso, essa teologia separa
a morte de Jesus de tantas outras mortes violentas, a cada dia, ocorridas pela
justiça e pela libertação. Se a morte de Jesus foi o sacrifício do Filho de
Deus para salvar a humanidade nada tem a ver com as cruzes nossas de cada dia.
É preciso superar esse
modo de compreender a fé e a Páscoa. Apesar dos evangelhos lhe emprestarem
palavras que podem ser compreendidas no sentido sacrificial, parece que nem o
próprio Jesus, inserido na cultura e religião hebraicas, pensava assim. A cruz era o suplício que os romanos
reservavam para os escravos rebeldes e prisioneiros políticos que lutavam
contra a ordem do Império. Com essa acusação, referendada pelas autoridades
religiosas, ligadas ao poder político que dominava aquela região, Jesus foi
condenado a morrer na cruz.
A morte de Marielle,
Anderson e Pedro, assim como a de Oscar
Romero e de tantos outros/as nos desafiam a compreender e celebrar a memória da
morte de Jesus como martírio e não como sacrifício. Aí sim, a fé na
ressurreição de Jesus nos faz ver além da morte. A caminhada da Igreja de base
e sua inserção nas lutas de libertação nos ensinam que o martírio não é apenas
uma forma de morrer, mas, principalmente, uma forma de viver. Somos testemunhas
de que esse mundo tem remédio e apesar de todas as forças do mal, seguiremos
nessa caminhada. No 6º Encontro Intereclesial de CEBs, em Trindade (1986), as
comunidades afirmaram: “Nós queremos
nossos mártires vivos e não mortos”. Cremos na ressurreição. Por isso, através
da continuidade da luta, podemos, hoje, dizer:
Viva Marielle, Anderson, Pedro e todas as testemunhas do mesmo projeto pascal
de Jesus.