Pablo Richard, doutor da fé e da amizade
Marcelo Barros
Pablo Richard, teólogo e exegeta chileno, um dos pilares da Teologia da Libertação na América Latina, revivenciou, ou seja, partiu para outra dimensão da vida. Quem teve a graça de conhecer de perto e, de alguma forma, conviver com Pablo Richard sabe a dor de ver partir alguém que nos era tão querido e sempre tão presente em nossas vidas e na caminhada da Igreja dos pobres.
É verdade que nos anos mais recentes, já com seus 80 anos completados em 2019, a saúde era frágil e ele parecia nos avisar de que estava prestes a partir. Mas, era sempre muito vivo e perspicaz, cheio de um humor afetuoso e brincalhão.
Quem o encontrava assim tão cordato não imaginaria que em sua juventude, no final da década 1960e começo dos anos 1970, ele tinha sido um dos fundadores no Chile do coletivo “Cristãos para o Socialismo” e era o seu principal pensador na tarefa de unir criticamente e de modo profético a Teologia e a leitura da realidade. Com o golpe militar no seu país, Pablo foi obrigado a se exilar na Europa. E ali além do doutorado em exegese bíblica e sociologia, a distância metodológica o ajuda a aprofundar uma forma própria de ser profeta como teólogo e fazer assim uma teologia muito inserida nos desafios e rostos da realidade.
Nas primeiras vezes em que nos encontramos, ainda no final dos anos 1970, ele me fazia ver que tínhamos sido ambos influenciados pelo pensamento e intuições do mesmo mestre, o padre José Comblin que tinha sido professor dele no Chile e professor meu durante todo o curso de Teologia no Recife. A partir daí, parece que sempre nos sentimos como irmãos e companheiros na busca de como fortalecer os irmãos e irmãs da caminhada na esperança do reino divino aqui e agora.
Durante todas essas décadas (dos anos 70 até agora), Pablo nos ensinou com seu jeito próprio a unir a caminhada social, uma espiritualidade ecumênica e laical e aquilo que chamamos “a Igreja dos pobres” a serviço da libertação, que como afirmaram os bispos em Medellín: “é libertação de toda a humanidade e de cada ser humano em todas as suas dimensões” (Med. 5, 15).
José Comblin foi quem, por primeiro, escreveu sobre “os pais da Igreja na América Latina” . Sem dúvida, entre eles, desde os primeiros anos da caminhada, sempre esteve Pablo Richard e agora está com Comblin no céu, assim como junto com Oscar Romero, Samuel Ruiz, Sergio Mendes Arceo, Leónidas Proaño, Pedro Casaldáliga e tantos outros pastores e pastoras que souberam revitalizar a missão ministerial como profetas da Palavra de Deus para o mundo. Para os oprimidos do mundo, Pablo sempre soube ser realmente, como escreveu o profeta João no Apocalipse: “irmão e companheiro nas tribulações e no testemunho do reino” (Ap 1, 9).
Se em uma Igreja hierárquica, para ser pastor e doutor da fé, o normal é ser bispo, por seu modo de ser e por sua forma de exercer sua missão de assessor sempre muito presente às bases, Pablo Richard nos revelou uma forma de unir essas vocações de presbítero ou mesmo epíscopo, vigilante das comunidades e pai de família casado com filhos e netos. Para ele, isso nunca foi fácil e exigiu dele uma abertura imensa de coração e muita fidelidade na busca e no diálogo com sua esposa e os seus. Mas, ele foi sempre assim, sempre fiel e um verdadeiro mestre do cuidado com os outros e outras.
Por essa sua compreensão da fé e do ministério eclesial, Pablo tornou-se mesmo para não crentes testemunha autorizada de Jesus, ilustre doutor da fé e de uma espiritualidade libertadora. Ele nunca restringiu sua missão ao âmbito da Igreja. Soube sempre ser uma presença de irmão e companheiro solidário com as lutas sociais do povo, aliado incondicional dos campesinos e dos índios na sua legítima e evangélica luta pela terra e por uma vida digna.
A tendência natural é que as pessoas sejam mais abertas e livres quando jovens. À medida que a idade vai chegando, se tornam menos livres e mais conservadoras. É verdade que, hoje, em certos ambientes do clero e de algumas congregações, encontramos jovens mais conservadores e preocupados com a lei do que a geração mais velha. Mas, isso não é natural. Tem razões e explicações mais estratégicas e menos espirituais. Não tem nada a ver com o que Deus fez acontecer na vida de profetas como Pablo Richard que, quanto mais maduros na idade, mais se abriram interiormente. Ele soube renovar-se permanentemente em um processo espiritual e humano muito belo. Quanto mais idoso e frágil, foi se tornando mais livre e assim testemunhava a liberdade do Espírito. Nesse caminho, agora, do céu, nos convida, a prosseguir e a aprofundar sempre a mística do reino de Deus e vivê-la no compromisso social e político junto com os empobrecidos e pequeninos desse mundo.
A essas alturas, Pablo já ouviu de Jesus, seu mestre, a palavra esperada: “Muito bem, servo bom e fiel, entra na alegria do teu Senhor” (Mt 25, 21). Pablo Richard, doutor da fé e profeta desses tempos conturbados, rogai por nós.