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Palavras ao receber da Câmara Municipal do Recife o título de Cidadão honorário da cidade.

Minhas palavras ao receber da Câmara Municipal de Recife o título de Cidadão honorário da cidade:

 

Recife, 26 de setembro de 2023

 

Queridas irmãs, queridos irmãos, 

 

Talvez alguém possa dizer que esse tipo de cerimônia é mera  formalidade social. De fato, é ato simbólico e como tal é importante. É, antes de tudo, sinal de amizade e carinho por parte dessa Câmara Municipal que, a partir da proposta da querida amiga e vereadora Liana Cirne, me oferece esse título de cidadão honorário do Recife. Fico comovido com esse gesto de Liana e de todos vocês e só posso agradecer. Presente de amizade é gratuito. Nem precisamos ter certeza de merecê-lo. Trata-se apenas de receber, curtir e agradecer. Essa é minha primeira reação: agradecer comovido. E renovar o meu compromisso de exercer essa cidadania que me é oferecida no trabalho e na luta, para que todas as pessoas que moram nessa cidade possam ser reconhecidas como cidadãs de pleno direito. 

 

Aí vem um segundo sentido simbólico. Cidadania é essencialmente termo coletivo. Não tem sentido ser cidadão sozinho. Os planetas de um só homem só existem no Pequeno Príncipe do St Exupery e para serem criticados como não reais. Nenhum ser humano é uma ilha. Cidadania só pode ser vivida na relação e naquilo que, na encíclica Fratelli Tutti, o papa Francisco chama de “amizade social”. 

Comumente, as câmaras municipais dão títulos como esse a empresários poderosos que investem na cidade, a autoridades sociais e políticas ou religiosas, que influenciam na organização da sociedade. Eu sou apenas um monge, filho de família de operários de fábrica de Camaragibe e que está chegando quase aos 80 anos com apenas uma conquista: boa rede de amizade e a teimosia de propor um mutirão da profecia e da esperança. E o único título de honra do qual não abro mão é o de irmão e companheiro, que assessora movimentos populares como o MST, acompanha comunidades indígenas e negras, assim como pastorais sociais e comunidades eclesiais de base. 

 

Nesse mesmo auditório, há mais de 55 anos no dia 11 de setembro de 1967, nosso querido profeta e saudoso mestre Dom Helder Camara recebia dessa Câmara esse mesmo título. Naquela ocasião, ele pronunciava um discurso, no qual se propunha a fazer balanço e prestação de contas do seu trabalho na arquidiocese de Olinda e Recife, em seus então três anos e meio de pastoreio. (O discurso que pronunciou naquela ocasião está escrito na 291ª circular e publicado no tomo I do Volume IV das Circulares – Circulares pós-conciliares). 

Nesse discurso, feito aqui na Câmara, Dom Helder dizia que tinha consciência de que muitos o criticavam por parecer mais líder social do que religioso. E explicava que era a própria espiritualidade e o seguimento de Jesus que o faziam assumir as causas sociais e a consagrar a vida à transformação do mundo.  

 

Hoje, 56 anos depois, invoco a herança que eu e vocês aqui do Recife recebemos de Dom Helder como pastor e me coloco como alguém que busca sempre recordar às Igrejas cristãs, às diversas religiões  e à sociedade que a fé e a espiritualidade só podem ser vividas de forma profunda no compromisso social e político a serviço das comunidades mais empobrecidas e excluídas dos seus direitos de cidadania. 

Que esse nosso encontro na casa de José Mariano e sob o seu patrocínio, possa fortalecer o papel que a Câmara Municipal pode exercer na promoção da cidadania, dos direitos dos cidadãos e cidadãs,  na parceria do poder publico com cidadãs e cidadãos comprometidos com as causas que atualizam a luta de José Mariano contra a escravidão e pela integração social de todos e todas na plena cidadania da nossa cidade. 

Exatamente por isso, ao receber esse título tão importante que, hoje, vocês me dão, peço que simbolicamente sejam inscritos nesse título, como cidadãos honorários, como eu, os nomes dos irmãos e irmãs da imensa multidão, a qual são negados todos os direitos, como o da cidadania. E entre esses, crucificados do mundo, há os companheiros e companheiras, militantes do povo organizado, com os quais, desde minha juventude, em nome de Jesus, consagro minha vida e minha esperança: os irmãos e irmãs do MST, aqui representados pelo grupo que veio me presentear com sua participação e ao qual me junto na luta pela Reforma Agrária e pela justiça no campo. 

Recebo esse título, porque confio que vocês aceitem que eu o partilhe, simbolicamente, com nossos irmãos e irmãs indígenas que vivem nessa cidade e que estão aqui representados pela Cacica Kyalonan e o Pajé Juruna do povo Karaxu Wanassu. Essa comunidade originária está reunida na ocupação heróica em Monjope, que se situa em Igarassu, fora do município do Recife, mas acolhe irmãos e irmãs indígenas que viviam pelas ruas da nossa cidade, sem nenhum reconhecimento de seus direitos humanos e comunitários. 

Também partilho esse título, especialmente com as comunidades negras com suas culturas e suas expressões religiosas. Como cristão, agradeço a Deus os 115 anos de vida da Umbanda em nossas terras e reverencio em nome de todos os irmãos e irmãs da Umbanda, do Candomblé e da Jurema Sagrada os irmãos e irmãs que vieram aqui para essa cerimônia. 

E em nossas cidades se começam a reconhecer os direitos da natureza, os direitos da Mãe-Terra e os direitos dos rios e das matas. Desde 2018, o município de Bonito, aqui em Pernambuco, é o primeiro do país a reconhecer o Direito da Natureza, direito do rio Bonito,  de suas cachoeiras e serras. Imaginem se essa Câmara puder levar à frente essa discussão no Recife com relação aos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió... 

Será também que a cidadania pode tomar a fisionomia humana da nossa cidade que tem imensa multidão de filhos e filhas ainda nas ruas e nas calçadas de dezenas de prédios e edifícios abandonados e muitos deles em direção à ruína? Que alegria termos aqui nossa irmã Karina, representando a Pastoral do povo da rua. 

 

Só podemos agradecer à prefeitura do Recife a criação do RECENTRO com o seu programa de revitalização do centro de nossa cidade. Ficamos contentes em saber desse programa e o acolhemos com confiança. Esperamos que, mesmo se as soluções que tocam as estruturas nunca são imediatas, quem tem fome não pode guardar o estômago para amanhã. Recife precisa do nosso cuidado hoje e agora. Sem dúvida, as pessoas responsáveis pelo programa RECENTRO e a prefeitura sabem que o centro da nossa cidade nunca será verdadeiramente revitalizado apenas a partir de projetos de grandes redes hoteleiras e investimentos privados de corporações que são as mesmas que provocaram o seu esvaziamento. 

A cidade de Havana em Cuba tornou o seu centro histórico restaurado exemplo de revitalização para o mundo todo porque devolveu o centro a moradores e moradoras comuns e até pobres. E no convívio das famílias e da vizinhança a cidade ressuscita. Que os retratos fantasmas que o cineasta nosso conterrâneo Kleber Mendonça Filho está levando em seu filme para o Óscar desse ano possa deixar de ser verdade e ele não precise fazer um segundo filme: retratos do Recife Zumbi. (Pior que os fantasmas que só assustam, os zumbis matam e mutilam as pessoas e a vida). 

Se a cidadania é comunitária, demo-nos as mãos e unamos nossos corações para sermos, em nossa cidade, promotores de cidadania, ao mesmo tempo recifense e planetária. 

Somos cidadãos do Recife, se garantimos que a nossa cidade continua merecedora dos lindos poemas de gigantes como Manuel Bandeira, Antônio Maria, Ascênsio Ferreira, Carlos Pena Filho e outros importantes. Hoje, temos os poemas da querida Cida Pedrosa e muitos poetas e poetisas de periferia que precisamos valorizar. 

E como poesia é arte de dar beleza à vida, faço aqui menção de dois recifenses ilustres:  a nossa querida irmã e amiga Dona Leda Alves, que como secretária de cultura da cidade, fez tanto pela nossa cidade. E, claro, nosso grande Paulo Freire. 

Comumente, o recifense Paulo Freire é reconhecido pelo mundo inteiro como educador e pensador da vida. É menos conhecido como poeta. Eu me identifico muito com um poema que ele fez, em 1969, quando estava no exílio no Chile. Quero concluir essa minha fala com esse poema que Paulo Freire dedicou à nossa cidade do Recife e que parece celebração litúrgica na qual envolvo vocês todos e todas comigo:  

 

Recife Sempre,  

poema de Paulo Freire

Cidade bonita, cidade discreta

Difícil cidade, cidade mulher.

Nunca te dás de uma vez.

Só aos pouquinhos te entregas

Hoje um olhar, amanhã um sorriso.

Cidade manhosa, cidade mulher.

Podias chamar-te Maria, Maria da Graça

Maria da Penha, Maria Betânia, Maria Dolores.

 

De Santiago te escrevo, Recife, 

Para falar de ti a ti, 

Para dizer-te que te quero 

Profundamente, que te quero. 

 Cinco anos faz que te deixei – 

Manhã cedo – tinha medo de olhar-te, 

Tinha medo de ferir-te 

Tinha medo de magoar-te. 

Manhã cedo – palavras não dizia. 

Como dizer palavra se partia?

 

Tinha medo de ouvir-me, 

Tinha medo de olhar-me, 

Tinha medo de ferir-me, 

Manhã cedo – as ruas atravessando

O aeroporto se aproximando, 

O momento exato chegando, 

Mil lembranças de ti me tomando 

No meu silêncio necessário. 

 

De Santiago te escrevo, 

Para falar de ti a ti, 

Para dizer-te de minha saudade, Recife, 

Saudade mansa – paciente saudade, 

Saudade bem-comportada. 

 

Recife, sempre Recife, 

de ruas de nomes tão doces, 

Rua da União, que Manuel Bandeira tinha “medo que

 se passasse a chamar rua Fulano de tal” 

e que hoje eu temo que venha a se chamar 

Rua Coronel Fulano de Tal. 

 

Rua das ceroulas, Rua da Aurora 

Rua da amizade, Rua dos Sete Pecados. 

Recife sempre. 

Teus homens do povo, queimados do sol 

gritando nas ruas, ritmadamente: 

Chora menino pra comprar pitomba! (...)

 

Doce de banana e goiaba! 

Faz tanto tempo!

 

Para nós, meninos da mesma rua, 

aquele homem que andava apressado 

quase correndo – gritando, gritando: 

Doce e banana e goiaba! 

Aquele homem era um brinquedo também. 

Doce de banana e goiaba! 

Em cada esquina, um de nós dizia: 

Quero banana, doce de banana! 

Sorrindo já com a resposta que viria.

Sem parar, sem olhar para trás, 

sem olhar para o lado, 

apressado, quase correndo, 

o homem-brinquedo assim respondia: 

“Só tenho goiaba 

– Grito banana porque é meu hábito”. 

Doce de banana e goiaba! 

Doce de banana e goiaba! 

Continuava gritando, 

andando apressado, sem olhar para trás, 

sem olhar para o lado, o nosso homem-brinquedo.

 

Foi preciso que o tempo passasse, 

que muitas chuvas chovessem, 

que muito sol se pusesse, 

que muitas marés subissem e baixassem, 

que muitos meninos nascessem, 

que muitos homens morressem, 

que muitas madrugadas viessem, 

que muitas árvores florescessem, 

que muitas Marias amassem,

que muito campo secasse, 

que muita dor existisse, 

que muitos olhos tristonhos eu visse, 

para que entendesse 

que aquele homem-brinquedo 

era o irmão esmagado 

era o irmão explorado 

era o irmão ofendido 

 o irmão oprimido 

 proibido de ser.

 

Recife, onde tive fome

Onde tive dor

Sem saber por que

Onde hoje ainda

Milhares de Paulos

Sem saber por que

Têm a mesma fome

Têm a mesma dor,

Raiva de ti não posso ter.

 

No ventre ainda, ajudando a mãe

a pedir esmolas, a receber migalhas.

Pior ainda: a receber descaso de olhares frios.

Recife, raiva de ti não posso ter.

 

Recife, cidade minha,

Já homem feito, teus cárceres experimentei.

Neles, fui objeto, Fui coisa, Fui estranheza. 

Quarta feira. 4 horas da tarde.

O portão de ferro se abria.

Hoje é dia de visita. Sem fila.

 

Recife, cidade minha,

Em ti vivi infância triste

Adolescência amarga em ti vivi.

 Não me entendem, se não te entendem

Minha gulodice de amor

Minhas esperanças de lutar

Minha confiança nos homens

Tudo isto se forjou em ti

Na infância triste, na adolescência amarga

O que penso, o que digo

O que escrevo, o que faço

Tudo está marcado por ti.

 

Sou ainda o menino

que teve fome, que teve dor

Sem saber porque,

só uma diferença existe

entre o menino de ontem

e o menino de hoje, que ainda sou:

Sei agora por que tive fome

Agora eu sei por que tive dor.

 

Recife, cidade minha.

Se alguém me ama, que a ti me ame

Se alguém me quer, que a ti te queira.

Se alguém me busca, que em ti me encontre

Nas tuas noites, nos teus dias

Nas tuas ruas, nos teus rios

No teu mar, no teu sol

Na tua gente, no teu calor

Nos teus morros, nos teus córregos

Na tua inquietação, no teu silêncio

Na amorosidade de quem lutou e de quem luta.

De quem se expôs e de quem se expõe

De quem morreu e de quem pode morrer

Buscando apenas, cada vez mais,

Que menos meninos tenham fome e tenham dor

Sem saber por que. 

Por isto disse: Não me entendem se não te entendem.

O que penso,  que digo,

O que escrevo, o que faço,

tudo está marcado por ti.

Recife, cidade minha,

Te quero muito, te quero muito.  (Santiago, fevereiro de 1969).

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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