Palavras que falei na mesa de debate
depois do filme “O voo da primavera” (de Dagmar Talga)
Esse filme é sobre Dom Tomás Balduíno e a sua luta pela terra junto aos lavradores, assim como a defesa dos povos indígenas, desde os anos 70 até a morte desse grande profeta em maio de 2014. Ver esse filme foi para mim uma experiência comovente porque fiz parte dessa luta, vivi anos e anos junto com Dom Tomás (durante alguns anos até morei na mesma casa com ele, tanto no Centro de Treinamento de Goiás, (de 1977 até 1982) como depois no convento dos dominicanos de 2005 a 2009). Desde 1977 até sua morte, me considerava seu assessor e amigo pessoal. Embora não tenha podido acompanha-lo em seus últimos dias, como alguns de vocês aqui o fizeram, (eu já morava no Recife), telefonava sempre e através do frei José Fernandes, procurava saber dele quase a cada dia. Ao ver esse filme em mais de hora e meia de filme e com tantos depoimentos, quase não vi ninguém que eu não conhecesse. A maioria foi e ainda é de amigos e companheiros com os quais convivi e trabalhei. A memória dos mártires que aparece no filme me toca muito porque fui companheiro e amigo do padre Josimo Tavares, fui professor em curso bíblico da irmã Dorothy e de outros mártires da terra. Que responsabilidade terrível.
Como aqui já se falou muito sobre Tomás, eu quero apenas sublinhar alguns pontos que me chamam a atenção no filme e na memória que guardo desse grande irmão e que foi para mim como um pai.
1º - Como aqui contou Valdir do MST, na noite em que morreu, em seu leito de agonia, Tomás ainda estava querendo escrever uma carta à assembleia da CNBB para pedir que os bispos fossem mais fortes e mais eficientes na defesa do direito dos lavradores e dos índios. Com o organismo todo depauperado, insuficiência de vários órgãos e câncer nos ossos com dores atrozes, ele não parecia lembrar das dores. Nem se fixava na insuficiência respiratória e cardíaca. Até quase meia hora antes de morrer, pedia para ditar uma carta à CNBB sobre a questão da terra.
Qual o segredo pelo qual um homem como ele, bispo emérito e com 92 anos viveu até a noite de sua morte, preocupado com o problema da terra e a luta dos lavradores e dos índios?
Essa era a sua energia erótica, era aos 92 anos a sua paixão que lhe dava vontade de viver e alegria. E como disse Valdir e atestam os companheiros do MST: ninguém nunca viu Tomás com cara de dor ou de tristeza. Tomás viveu feliz. No debate dessa noite, outro companheiro falou: Dom Tomás não morreu. Se encantou.
2º - Essa unidade profunda entre vida pessoal e causa pela qual lutou sempre explica a sua liberdade interior. Quem acompanhou Dom Tomás no hospital nos últimos meses de sua vida sabe como ele, que nunca esteve doente na vida e sempre foi muito independente, soube aceitar a ajuda dos outros. Adaptou=se a ter sempre um cuidador consigo e a ele ou a ela se entregava como se fosse uma criança nas mãos da mãe. E essa humanidade que ele Tomás reuniu em torno de si não podia ser improvisada. Só existiu porque ele a construiu durante toda a vida. E essa simplicidade e comunhão indicava a transformação da vida e do mundo que todos nós desejamos.
3º - É indispensável dizer hoje que essa espiritualidade aparentemente pouco religiosa fez de Tomás um profeta do reino de Deus e um exemplo de como viver a fé não de forma religiosa no culto e no templo, mas na dedicação à causa dos pequenos e por um novo mundo possível. Hoje, quase não temos mais esse tipo de bispos. (São poucos os que atualmente seguem essa linha). Tomás nos convida a nós sermos esses bispos e bispas leigos e leigas dessa Igreja serviço da transformação do mundo.