Este é o texto que preparei e mando para Passo Fundo onde devo falar na Universidade Federal de lá (RS) na sexta feira, 27 de outubro. Será um encontro com educadores/as sobre Educação para a Paz
Para colaborar com o parto de uma humanidade nova
(Para intensificar nossa vocação de educar para a paz)
“Feliz quem trabalha pela paz, porque será chamado/a filho/a de Deus” (Na cultura hebraica, ser filho/a de Deus significa que é alguém que faz o que Deus faz. A paz é uma ação divina) Mt 5, 8).
Ao saber que teríamos aqui este encontro sobre educação para a paz, um amigo me questionou: - Ainda, até quando? Essa história de educação para a paz já não está meio repetitiva e desgastada? Senti-me meio desnorteado porque, ao tratar esse assunto, me sinto como um homem que todo dia, pela manhã, acorda, dá um beijo na pessoa amada e lhe diz: eu te amo. Sabe que é o mesmo rito de sempre, há muitos anos, mas não sente como algo ultrapassado ou que é mera repetição. A energia amorosa torna esse gesto atual e sempre original.
Às vezes, tratamos de assuntos que são urgentes e de cujo teor sentimos falta. Outras vezes, devemos aclarar coisas que já vivemos, mas sentimos a necessidade de confirmar e aprofundar o caminho percorrido. Toda pessoa que ajuda a juventude a aprofundar um caminho alternativo para o futuro já vive como educador/a uma missão de educar para a paz, mas é bom não só confirmar isso, como aprofundar sempre mais. Sei que aqui estou falando para verdadeiros mestres e mestras nessa arte bela e exigente de educar para a paz, no contexto de uma estrutura escolar que não foi pensada para educar para a paz e sim para legitimar e fortalecer o status quo do sistema vigente em nosso país e no mundo.
Estou vindo há poucos dias de um encontro em uma universidade de Bogotá na Colômbia. Ali, assisti a passeatas e manifestações de milhares de adolescentes e jovens, pedindo uma educação gratuita e de qualidade, assim como uma lei de ensino mais democrática. No Chile, há meses, milhares de jovens estão gritando nas ruas por uma educação alternativa. Em Madri, desde março, as manifestações de los indignados começam a preocupar os governos e a sociedade dominante. Vejo tudo isso como educador doido para que os jovens sejam ouvidos e atendidos, mas também como buscador do mistério que vê nessas manifestações uma expressão de espiritualidade humana, não religiosa, mas profundamente mística, porque desejosa de um mundo novo e de novas relações entre nós. Agora, diante de vocês, não penso que é o caso de retomar as bases e diretrizes de uma educação para a paz. Vocês fazem isso, alguns há anos e anos, e eu aprendo com vocês. O que posso é agradecer de coração o belo e profundo testemunho que vocês nos dão ao nadar contra a corrente e perseverar e aprofundar esse caminho de educação para a paz, seja em Guaporé, seja aqui em Passo Fundo, seja em outros rincões deste Rio Grande. Minha proposta, hoje, é, em primeiro lugar, como irmão e companheiro no caminho, confirmar vocês na urgência dessa missão de educadores/as da paz e também dialogar com vocês sobre a espiritualidade ecumênica e humana que fundamenta e alicerça esta missão de educadores/as da paz.
1 – A urgência e os desafios novos dessa missão
Quando olhamos na América Latina e no mundo inteiro, a emergência dos novos movimentos sociais, da juventude nas praças e a mobilização crescente da sociedade civil que, de um modo diferente dos tempos dos sindicatos e partidos, hoje, se organizam e se manifestam por um novo mundo possível, podemos ver que a semente que plantamos pegou e que vocês e tantos de nossos grupos de educadores para a paz e a justiça temos responsabilidade nessa história nova. Então, agora que o pavio acendeu e a semente floresceu não podemos pensar que nossa tarefa está cumprida ou já é menos necessária. Ao contrário, os movimentos bolivarianos que organizam uma nova revolução social e democrática em países como a Venezuela, Equador, Bolívia e outros, mesmo com suas contradições e problemas internos, deixam claro o que Paulo Freire já nos ensinava: A educação sozinha não mudará o mundo, mas nenhuma mudança profunda se fará sem a educação. No século XIX, o libertador Simon Bolívar já falava que a revolução é como uma árvore de três galhos ou ramos e o principal deles é a educação. Evidentemente, este conceito de educação é o de um processo de conscientização social e humana que parta da vocação de todo ser humano para a justiça e para a paz. Na América Latina, mais até do que em outros lugares, há tempos descobrimos que não dá para falar de educação para a paz sem ser a partir da justiça social e da transformação do mundo.
Na 11ª tese sobre Feuerbach, Marx dizia que, durante toda a história da humanidade, os filósofos se limitaram a interpretar mundo. E o importante é transformá-lo. Sem dúvida, ele critica os filósofos que se preocuparam só em interpretar, mas não nega que para transformar é preciso também saber interpretar corretamente. E, certamente, podemos dizer que, desde a antiguidade, houve educadores que, como líderes espirituais se preocuparam sim em transformar o mundo. Principalmente os pensadores e educadores que foram, ao mesmo tempo, pessoas profundamente espirituais. As fronteiras dos temas coincidem: educação, espiritualidade e transformação do Mundo. Tanto Sócrates com a sua Maiêutica, como mestres espirituais como Jesus no Evangelho (Jo 16, 20 ss) usaram a imagem do parto como parábola da educação e da transformação do mundo. Quem educa não dá a luz a ninguém, mas é como parteiro/a. Faz o parto do mundo novo que buscamos. Como ninguém é educador/a, sem, ao mesmo tempo, colocar-se como permanente educando/a, todos somos parteiros/as e grávidos/as desta realidade nova.
Em um texto do início dos anos 50 sobre Educação, o filósofo alemão Theodor Adorno diz: “Atualmente, a questão mais urgente da educação se tornou o que eu chamo ´desbarbarizar´. A nossa civilização alcançou um elevado desenvolvimento tecnológico, mas muitas pessoas se encontram como que tomadas por uma agressividade primária, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência imanente que a caracteriza. O problema que se impõe é saber se é possível, por meio da educação, superar a barbárie. Considero isso tão urgente que reordenaria todos os outros objetivos educacionais para esta prioridade de libertar as pessoas desta barbárie”[1]. Quando vemos o que hoje está ocorrendo em vários países da África, mas também nas fronteiras dos Estados Unidos com o México e em países da Europa como a Itália, em relação aos migrantes e refugiados clandestinos, percebemos que essa barbárie que Adorno denuncia só piorou e se tornou mais endêmica no mundo atual. Portanto, nossa educação para desbarbarizar o mundo e a vida é ainda mais urgente e essencial. Para isso, creio que é importante assumirmos a própria missão de educar como um caminho de espiritualidade ecumênica e humana que tento aqui agora explicar e propor a vocês.
2 – Limpando o terreno da espiritualidade
O termo é ambíguo e parece até negativo porque muitas vezes é compreendido em um sentido muito restrito: religioso ou espiritualista. Antes de tudo, deixemos claro:
a - Espiritualidade não é espiritualismo.
Não se trata de algo desligado do real e que divide o material e o espiritual, de forma que o espiritual seria cuidar do espírito. Espiritualidade é algo mais amplo e não divide corpo e alma, matéria e espírito. A espiritualidade abarca uma forma de viver na qual é importante tanto o cuidado com o interior da pessoa, quanto o compromisso de dar uma alma à sociedade, por exemplo, no plano cultural, social e político.
b – Espiritualidade não é intimismo.
Quem é espiritual tem de cuidar profundamente de sua interioridade, dimensão muitas vezes deixada de lado em um mundo muito voltado só para a produção e as aparências. O Dalai Lama tem razão quando denuncia que o Ocidente se desenvolveu muito “para fora”, mas não cultivou a interioridade necessária para uma vida integrada e feliz. Os espirituais antigos valorizavam muito este cuidado em se unificar interiormente. Entretanto, a verdadeira espiritualidade não tem nada a ver com nenhum tipo de intimismo ou exacerbação do individualismo. A comunidade e as relações sociais fazem parte da espiritualidade.
c – Espiritualidade não é legalismo, nem moralismo.
Espiritualidade é um caminho de amor e, portanto, se faz de graça e pela graça, ao contrário de um caminho de lei e de deveres morais. A Ética é uma dimensão fundamental da Espiritualidade, mas não como causa ou princípio da Espiritualidade, mas como conseqüência e expressão. A espiritualidade é mais do que lei e moral. É caminho de amor, é casamento.
A espiritualidade é viver e compreender a vida a partir da amorosidade e de uma dinâmica que é a da própria vida: evolução para a comunhão e para integração com o diferente. Hoje, a Física Quântica, a Biologia e a Cosmologia apontam nesta direção: existe uma flecha que está subindo, desde as mais elementares formas de organismos até a complexidade da vida e esta vai cada vez mais se complexificando até atingir a vida humana e o que chamamos de “espírito”, que seria uma espécie de consciência amorosa de mim mesmo, dos outros e do universo. Fritjof Capra, cientista e físico, escreve: “A vida não é propriedade de um único organismo ou espécie, mas de um sistema ecológico. Nenhum organismo individual vive em isolamento”[2]. Então, se trata de acolher e testemunhar uma qualidade de vida e uma opção pela vida que seja vida para todos e vida de verdade. Isso não implica em si em ser religioso/a, o que pode ser excelente para quem tem esta opção, mas, hoje, aumenta o número de pessoas que optam por fazer um caminho espiritual profundo, sem ligar-se a nenhuma religião. Ser espiritual implica em ser profundamente humano, aberto a ser permanentemente convertido ao processo de divinização que só se dá através do outro e por um caminho de solidariedade.
3. Educar-nos para ser humanos em uma sociedade desumana
Nas escolas, os professores ensinam valores éticos, podem até dar uma visão crítica da história, mas preparam seus alunos para competir no vestibular e, como se diz por aí, “vencer na vida”, do mesmo modo como, nos séculos XVIII e XIX, educavam a juventude da elite a ser cristãos mas conservando em casa seus escravos e treinando os jovens para fazer guerra a seus inimigos. Do mesmo modo como, hoje, julgamos incrível que as pessoas de séculos passados, tenham considerado a escravidão como algo natural ou, ao menos, inevitável, daqui há um ou dois séculos, as pessoas da época poderão estranhar que nós, do início do século XXI, convivamos tranquilamente com este sistema que condena diariamente milhões de pessoas à fome e tantas crianças à morte. Durante quase 400 anos, salvo algumas honrosas exceções, a hierarquia católica e também a das outras Igrejas foram coniventes ou, ao menos, indiferentes à escravidão negra. Hoje, se as Igrejas cristãs e as grandes tradições espirituais da humanidade tomassem uma atitude profética firme contra o Capitalismo, declarassem ilegal e iníquo o sistema que continua oprimindo os povos africanos e os países pobres do mundo, se dissessem claro que é essa forma de organizar a economia que está assassinando tanta gente e a natureza, o mundo poderia mudar. Como disse o pastor Martin Luther King no início dos anos 60: “O pior não é a opressão dos maus, nem a corrupção dos corruptos, mas a omissão dos que se dizem bons”. Mais de dez anos depois, no final dos anos 70, Dom Oscar Romero, arcebispo de El Salvador, dizia: “É fácil ser portador da Palavra e nunca incomodar a ninguém, ficando no espiritual puro, recusando-se engajar-se na História e dizendo palavras que poderiam ser ditas, não importa onde e quando, porque são palavras que não seriam mesmo de parte alguma” [3].
4. A crise do mundo e da educação
Muitos já disseram que estamos não apenas em uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Em todo o mundo, se fala em crise econômica, desemprego estrutural, aumento da pobreza, violência urbana, migrações desordenadas e um abalo fundamental nos valores éticos e sociais. A crise ecológica ameaça o futuro do planeta. A urbanização do mundo e a nova sociedade baseada no conhecimento e na informática mudaram radicalmente a cultura, a economia e a forma do ser humano relacionar-se consigo mesmo, com o outro e com a natureza. Nós vivemos este momento de transição de um tipo de civilização a outra.
É difícil definir os contornos precisos da crise e como esta se expressa. Além do desastre que o capitalismo neo-liberal tem provocado, percebemos que há uma mudança de cultura na forma se relacionar com presente, o passado e o futuro. Na obra “Le Christianisme a-t-il son temps?”, Jean-Marie Ploux distingue três etapas da humanidade: a da tradição, a da modernidade e a da relatividade. Até o século XVIII, a cultura era medida pelo seu passado. O presente era refém do tradicionalismo. Com o Iluminismo e o Marxismo, o presente aspirava orientar-se à luz de construções ideológicas do futuro. Com o fim das ideologias, o presente vacila. Falta um horizonte definido”[4]. Parece que as pessoas vivem o momento presente, sem projeto definido e sem perspectivas maiores do que o aqui e agora. Embora muita gente tente se defender no presente agarrando-se ao passado, o mundo parece um imenso avião cruzando o oceano da vida, sem radar nem acesso aos instrumentos de navegação. Não temos mais bússolas, a não ser o aqui e agora. Diante disso, qual a reação dos educadores e educadoras? Há quem procure salvação na lei e nas estruturas. Parece que os movimentos que mais crescem no mundo atual são os movimentos fundamentalistas, tanto no plano religioso, como no plano social e no nível político. A própria sociedade tem esta tendência em tempos de crise. Em vários países, jovens são mais conservadores do que seus pais.
Martin e. Marty e R. Scott Appleby escreveram em seis volumes um pormenorizado estudo sobre os Fundamentalismos atuais. Mostram que eles querem criar uma contra-cultura, ressacralizar o mundo cada vez mais cético”[5].
Quem descobriu com São Paulo que a salvação não poderá vir da lei, sabe que a rigidez, o conservadorismo não vai mudar nada, a não ser as aparências e ainda com o risco de tornar a sociedade menos adaptada ao mundo atual. É preciso assumir os riscos, superar o medo e a tendência de ficar na defensiva. O fortalecimento de uma educação para a paz e a justiça pode ajudar a humanidade a redescobrir uma nova forma de organizar o mundo a partir da transreligiosidade e do pluralismo cultural. Não se trata do chamado “multiculturalismo”, ao qual o sociólogo polonês Zigmunt Bauman refere-se como “uma cacofonia de vozes, confusão e mesmo ideologia do fim da ideologia”[6]. Não se trata de misturar e confundir elementos culturais que, no final, a cultura dominante sempre acaba se impondo. A proposta é outra, mas alternativa e profunda. É mesmo um caminho de diálogo a partir da diversidade, vivida a partir das culturas populares e do respeito da alteridade.
5. Viver o projeto educativo como forma de espiritualidade
A filósofa e espiritual Simone Weil afirmava: “Conheço quando alguém é de Deus não pela forma como fala de Deus, mas pelo modo como se relaciona com a vida e com o mundo”[7]. Poderíamos, hoje, dizer isso não apenas sobre Deus, mas sobre a espiritualidade como abertura ao outro e disponibilidade de sempre aprender do diferente. Assim compreendida, a solidariedade não é apenas fazer projetos sociais, participar de ajuda a quem precisa. É um principio de vida, um modo de viver e no qual nos comprometemos amorosamente com o outro.
Para isso, não há receitas. Aqui tento elencar alguns elementos de método e forma de viver uma espiritualidade ecumênica e solidária.
5. 1 – Ser fiel à realidade e a uma mística da vida.
Não existe projeto educativo sem se trabalhar o/a educador/a. A proposta dessa visão de educação como espiritualidade ecumênica é nos colocar em caminho e em processo. O método educativo de partir da realidade pede de nós, antes de tudo, assumir nossa realidade pessoal, com suas fragilidades e suas ambigüidades de cada dia. Ninguém pode exigir do/a educador/a que seja perfeito/a, mas é fundamental mostrar que está a caminho. Santo Agostinho dizia que o mais desconhecido que podemos explorar é o que há de mais interior a nós mesmos. No plano das convicções, a fé não exclui as dúvidas. Hoje, vivemos em um mundo confuso, no qual temos de abrir mão, não de nossas convicções, mas de nossas certezas. Não mascarar isso e, ao mesmo tempo, tomar a opção de trabalhar as contradições, grandes ou pequenas que vivemos, é a base indispensável de sinceridade e de realidade para avançar neste caminho.
A realidade é, ela mesma, dialogal. Walter Kasper afirma: “A própria natureza da existência humana põe em relevo o fato de que não vivemos, nem existimos uns sem os outros. “Nós não só nos encontramos, mas somos encontro. O outro não é o limite do meu eu. O outro é parte e enriquecimento da minha existência. Por isso, o diálogo pertence à realidade da existência humana. A identidade é esencialmente dialógica”[8]. Michel de Certeau dizia que o diálogo é inerente ao próprio pensamento humano. “Penser, c’ est passer à l’autre” (Certeau). O que seria uma educação que não nos ajuda a descobrir e a viver isso?
Por ser uma noção tão polissêmica, é importante precisar melhor o que caracteriza propriamente o diálogo. “O prefixo dia contém a idéia de separação e diferença no sentido de libertação”[9]. Então, diálogo é o encontro entre pessoas ou grupos diferentes, com o propósito de colaborar um com o outro. Para que haja diálogo é necessário, ao menos, cinco pontos: 1º – que haja um encontro humano e não só comparação de idéias. 2 – que haja um intercâmbio de palavras. É preciso o mínimo de linguagem comum. 3 – Deve haver reciprocidade. Sem reciprocidade, pode haver abertura ecumênica, mas não diálogo. Para que haja diálogo, nenhum parceiro ou grupo pode se colocar como superior ou com mais direito do que o outro. 4 – Na base do diálogo há o direito à diferença ou alteridade. 5 – O diálogo supõe que as partes envolvidas façam previamente um compromisso ético de abertura e disponibilidade a mudar...
A educação tem de nos ajudar a desenvolver a capacidade de escutar o outro e de dialogar. Não adianta querer viver isso no plano profissional ou religioso se no nível inter-pessoal não houver um caminho transparente de conversão. Boaventura de Souza Santos sustenta: “A abertura ao outro é o sentido profundo da democratização do processo educativo” (...) “O grau de dissidência mede o grau de inovação”[10] .
5.2 – Resgatar o direito da emoção e da afetividade
Com sua grande experiência como educador, o professor Sílvio Bedin, em sua tese de doutorado na área da Educação, afirma: “Tomei como ponto de partida o que afirma Maturana sobre a centralidade das emoções na constituição do humano. Para ele, “todas as ações humanas, independentemente do espaço operacional em que se dão, se fundam no emocional porque ocorrem no espaço de ações especificado por uma emoção” (Maturana, 2001:170). Ao contrário do que se tem dito, não é a razão, mas as emoções que impulsionam e guiam o nosso viver. A própria razão é por elas embalada: “as emoções guiam o fluir do comportamento humano e lhe dão o seu caráter de ação” (Maturana, 2000:29). O propriamente humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional”[11].
Isso nos confirma na opção de resgatar e priorizar esse diálogo entre emoções e razão, entre os dois hemisférios cerebrais do ser humano e realizar um processo educativo mais amplo e vivencial que, para ser centrado no diálogo e na realidade do educando, tem de conter essas diversas dimensões humanas. Nos países andinos, a partir das novas constituições nacionais da Bolívia e do Equador, as comunidades populares estão investigando o que significa concretamente o sumak Kamana dos Aymara ou o Sumak Kwasay dos Ketchuas ou seja “o bem viver” que não significa apenas viver melhor ou o que na gíria se chama por aí “uma boa vida”. É muito mais: a questão da qualidade de vida ou o que diz o evangelho quando fala em “vida em plenitude”. Aqui entre nós, os Guarani falam em lekil kuxlejal, “vida verdadeiramente boa”. Sem dúvida, uma educação para a paz tem de partir desse objetivo e lutar por isso para os educandos e educadores. Isso é um projeto que diz respeito ao interior de cada pessoa, à realização da vida afetiva e das relações humanas mais próximas, mas alcança também e é importantíssimo à dimensão do político. Não seria possível realizar essa qualidade de vida apenas no nível interior e intra-pessoal sem enfrentarmos corajosamente a cultura individualista e o credo neoliberal contemporâneol. É preciso termos clareza de que, no sistema sócio-econômico vigente, não é possível realizar plenamente isso que estamos falando. E a educação para a paz não pode esperar até que se mude o sistema, mas ela será um processo iniciado que terá dificuldades imensas de avançar. Assim mesmo, temos de nos recusar a cair na fatalidade. Devemos mesmo resistir na contramão deste modelo social. Para se realizar isso, diz Frei Betto: “exigem-se 1º - uma visão crítica do neoliberalismo. (...) 2º - Organizar a esperança. Não basta esperar uma nova sociedade se não se trabalha para que ela se construa. Encontrar alternativas é um esforço coletivo (...). 3º - Resgatar a utopia. (...) 4º - Elaborar projetos alternativos que partam de novos valores e aprofunde a mística...”[12].
Concretamente, isso significa sempre se colocar do lado dos mais empobrecidos. Viver em nossas relações pessoais e no nosso modo de ser este processo é fundamental como caminho ecumênico e de solidariedade universal. É ainda um modo concreto, político, de vivenciar esta primazia das emoções na dimensão social e política.
Finalmente, gostaria de aludir à dimensão ecológica desse amor que nós pomos em prática no processo de educação para a paz. Se é verdade que “o Divino se revela no humano e nunca ser através do humano”[13]. O Espírito se revela também em todo o universo e é na comunhão com a natureza que nós o encontramos e nos deixamos penetrar por ele. Na festa de Pentecostes, as comunidades cristãs cantam um salmo baseado no livro bíblico da Sabedoria que diz: “O Espírito do amor, o universo todo encheu, tudo abarca em seu saber, tudo enlaça em seu amor” (Cf. Sb 1, 7).
[1] - Este texto me foi passado pelo professor EDUARDO SUGIZAKI em um texto disponível na internet quando se acessa o nome de Theodor Adorno.
[2] - FRITJOF CAPRA, As Conexões Ocultas, Ciência para uma vida sustentável, Sao Paulo, Ed. Cultrix, 2002, p. 23.
[3] - OSCAR ROMERO, l´Amour Vainceur, citado por PIERRE VILAN, Os Cristãos e a Globalização, Sao Paulo, Ed. Loyola, 2006, p. 41.
[4] . H. LEPARGNEUR, O Cristianismo na pós-modernidade, in REB, abril 2004, p. 293.
[5] - MARTIN E. MARTY e R. SCOTT APPLEBY, Conclusion: an Ínterim Report on a Hypothetical Family, Fundamentalisms Observed (Chicago e Londres, 1991), p. 814- 842, citado por KAREN ARMSTRONG, Em Nome de Deus, O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 11.
[6] - ZIGMUNT BAUMAN, Comunidade: a Busca por segurança no mundo atual, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 112.
[7] - citado por SEBASTIÃO SOARES, Prefácio do livro “O Espírito vem pelas Àguas”, Ed. Loyola, 2003.
[8] - GRUPO MISTO DE TRABALHO CATÓLICO- CMI, A Natureza e o Objetivo do Diálogo, Apêndice D do 8º Relatório publicado em 2005, Cf. Il Regno-Documenti 19/2005, 01/11/2005, p. 579.
[9] - JEAN CLAUDE BASSET, Le Dialogue Interreigieux, Histoire et Avenir, Ed. du Cerf, 1996, p. 22.
[10] - BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, O Social e o Político na Pósmodernidade, Sao Paulo, Ed. Cortez, 1995, p. 225.
[11] - SÍLVIO ANTÔNIO BEDIN, Da magia da criação: as éticas que sustentam a escola pública, tese de doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
[12] - FREI BETTO, Organizar a Esperança, in Correio Brasiliense, 6ª feira, 23/06/2006, p. 19.
[13] - MARTIN GELABERT, Cristianismo y Sentido de la Vida Humana, Valencia, 1995, p. 78.