Para juntos sermos felizes
(Meditação pessoal para uma leitura orante do texto)
O evangelho lido nas comunidades nesse 6º domingo comum (do ano C) nos traz um texto básico para a nossa fé: Lucas 6, 17- 26. Na tradição das Igrejas, o Sermão da montanha em Mateus (Mt 5- 7), que em Lucas é resumido como sendo um discurso de Jesus na planície aberta ao mundo inteiro (evangelho de hoje) se tornou como uma carta de princípios básicos ou uma espécie de regra constitucional do ser cristão.
Quando, aos 18 anos, entrei no mosteiro, aprendi que a vocação religiosa tem como objetivo, viver o mais profundamente possível a proposta das bem-aventuranças. Esse é o convite do evangelho de hoje para todos/as.
Provavelmente os evangelhos colhem palavras que Jesus disse aqui e a li e as reuniram em um discurso. As perspectivas de Mateus e Lucas são diversas. Mateus situa o discurso em um monte, como Moisés e os hebreus recebem a lei de Deus no monte Sinai. Jesus é o mediador da nova aliança da humanidade com Deus. Lucas não pensa nessa comparação e situa o discurso bem mais resumido em uma grande planície, como que visando a extensão do mundo inteiro. Mateus conta que Jesus disse nove bem-aventuranças. Lucas as resume em quatro e acrescenta quatro lamentações que Mateus não tinha trazido.
Nos versículos 17 a 19, (texto que não entra na leitura litúrgica desse domingo), Lucas situa o contexto social. Diz que o cenário é o de um povo aberto que se reúne para escutar Jesus e ser curado. Frisa que as pessoas vêm tanto do mundo judaico, como do mundo grego-pagão, o que é exatamente a realidade das comunidades para as quais, nos anos 80, esse evangelho foi escrito. A ação terapêutica de Jesus une a palavra e o toque corporal. No entanto, Jesus propõe mais do que a cura de doenças: propõe um caminho novo de vida: o caminho das bem-aventuranças.
André Chouraqui, judeu cristão que conhece bem a terra de Jesus e os costumes da época, traduz as bem-aventuranças por “em marcha” (ou “para frente!”).Ele explica que os evangelhos foram escritos em grego, mas Jesus falou em aramaico. Nessa língua antiga, esse é o sentido mais concreto das palavras de Jesus. No começo, eu não conseguia assimilar isso. Achava estranho que Jesus tivesse dito: Para frente, vocês que são pobres... Mas, lendo e escutando rabinos e pessoas mais afeitas à língua e à cultura hebraica compreendi porque, em hebraico, “bem-aventurança” significaem marcha.
Naquela cultura antiga, a infelicidade é estar parado. Em hebraico, o termo para doença é mahala, que quer dizer andar em círculos, estar preso, fechado em seu sofrimento, em seus pensamentos ou até mesmo em suas emoções. Tem gente que vive parada sobre a própria imagem, fixada nos sintomas, paralisada pelas memórias pesadas, negativas ou pela saudade idealizada do que foi vivido e acabou. Por isso, a bem-aventurança consiste, de fato, na disposição de dar um passo à frente.
Uma boa definição da espiritualidade é dar um passo a mais do lugar onde se está. (...) No seu livro sobre as bem-aventuranças, Jean-Yves Leloup insiste: “as bem-aventuranças são, cada uma, um convite para nos recolocar em marcha, a partir de nossas lágrimas, a partir do caminho que já percorremos. Há ainda muito a caminhar” (Vozes, 2004, pp. 57- 58).
A comunidade de Lucas proclama “felizes” e convoca para se pôr em marcha, “a vocês”, pobres, famintos e pessoas que choram”.E o motivo pelo qual são abençoados ou felizes é que Deus não quer que haja injustiças e desigualdade no mundo. São bem-aventurados porque, como daqui a pouco o reinado de Deus vem ao mundo, poderão deixar de ser pobres, famintos e aflitos. Ao colocar os verbos no presente, (“O reino é de vocês”), Jesus não fez apenas uma promessa para o futuro. De acordo com essas palavras, é possível ser feliz já, mesmo em meio à luta da vida.
Com as bem-aventuranças, Jesus anuncia que chegaram os tempos messiânicos e as pessoas deserdadas e marginalizadas pelo mundo são preferidas do reinado de Deus, não por seus méritos ou por alguma condição particular delas, mas simplesmente porque Deus as ama e quis salvá-las. Essas palavras de Jesus me confirmam na vocação de assumir a pobreza real e efetiva como opção de vida (a pobreza no sentido de sobriedade e o mais possível de partilha e comunhão com os pobres).
As pessoas que mais me marcaram no meu caminho de fé foram pessoas que tiveram na primeira etapa do seu caminho a decisão de viver a pobreza. Dom Helder Camara ao assinar o pacto das catacumbas e fazer da pobreza a porta para ser profeta da justiça e da paz no mundo. Pedro Casaldáliga com sua radicalidade em se inserir no mundo dos lavradores e dos índios. Isso para citar só dois entre muitos irmãos e irmãs que vivem esse caminho. Não há como esquecer São Francisco de Assis que descobriu o caminho que chamou da “alegria perfeita”, portanto, da felicidade, no despojamento vivido em comunhão com Jesus.
Quando eu era jovem, se propunha a pobreza no sentido ascético do morar na periferia e não ter as coisas. A teologia da libertação me ensinou a viver na comunhão com os pobres, mas contra a pobreza injusta. Agora, a ecoteologia me ensina que para a sobrevivência da vida na terra, é preciso mudar totalmente esse sistema de consumo. Os europeus falam em “decrescimento feliz”. Os índios nos ensinam o paradigma do bem-viver (colocar-se em comum uns com os outros e com a terra e priorizar o bem-comum).
Conforme Lucas, do mesmo modo que “parabeniza” aos pobres, famintos e sofredores, Jesus proclama quatro lamentações. Conforme o evangelho, ele estava na planície, com uma multidão de pobres que vieram para ser curados/as e libertados/as. Ali não estava ninguém rico. Mesmo assim, Jesus proclama essas lamentações: “Ai de vocês, ricos e todos os que estão muito bem na vida...”.
Certamente, Lucas se refere mais a pessoas e grupos da sua época do que diretamente a pessoas do tempo de Jesus. Nesse discurso, Jesus fala do presente e denuncia situações de injustiça. Ele reconhece: rebelar-se é justo, porque este mundo é absurdo. Sim, temos não só o direito, mas o dever sagrado de denunciar e de rogar praga contra um governo que é contra o direito dos pobres e contra um sistema que atenta contra a vida. Jesus faz isso ligando a situação atual com uma visão mística do futuro, aberta à esperança do reino, ou seja, a certeza de um mundo novo. Esse é o nosso caminho para juntos ser felizes.
No antigo “Ofício da comunidade de Taizé”, durante o tempo comum, a oração do meio dia sempre se conclui com a seguinte oração: “Ó Pai de amor, guarda-nos na alegria, na simplicidade e na misericórdia, segundo o teu evangelho (das bem-aventuranças). Abençoa- nos nesse caminho a nós e a todas as pessoas que nos confiaste. Por Cristo, nosso Senhor”. Amém.