É significativo que, nesta celebração da manhã deste dia, o evangelho proclamado seja Lucas 4, 16 a 21, o texto no qual Jesus manifesta a sua vocação profética e diz que o Espírito Santo o ungiu e o enviou para trazer a cura a todas as pessoas doentes e anunciar a libertação a todas que estão presas e oprimidas. Essas palavras de Jesus que revelam sua vocação carismática/ pentecostal e, ao mesmo tempo, transformadora do mundo (social e politicamente revolucionária) nos indicam o projeto divino de uma Páscoa nova não somente para nós, não apenas para as Igrejas, mas para o mundo, especialmente, hoje, em tempos pandêmicos e de guerras fratricidas. Amém.
Meditação para preparar o Tríduo Pascal
Nesta quinta-feira santa, entramos na celebração do Tríduo Pascal, o centro de todas as celebrações do ano. Nos tempos antigos, os pais da Igreja chamavam esses dias: as celebrações pascais. A quinta-feira santa é considerada A Páscoa da Ceia, memória da noite em que, conforme a tradição da Igreja, Jesus tomou sua última ceia com seus discípulos e discípulas e nos deu a eucaristia como sacramento da aliança nova.
Na sexta-feira, celebramos a Páscoa da Cruz. Durante séculos, a Igreja interpretou a paixão de Jesus como o sacrifício da vida que Jesus, voluntariamente, ofereceu ao Pai. Muitos cânticos e preces da liturgia e das devoções populares ainda expressam esse tipo de espiritualidade. Atualmente, sentimos que a imagem de Deus que essa teologia propõe é de um Pai que precisa que o Filho dele seja morto para ele aceitar se reconciliar com o mundo. É uma visão que era comum a algumas religiões antigas e que dialogava com as culturas da Idade Média. No entanto, hoje, temos de olhar para a paixão e cruz de Jesus de outro modo. O grande desafio atual é reler e reinterpretar a fé e o evangelho da Paixão não mais em uma linha sacrificial e sim como testemunho (martírio) do Cristo que, pela doação de sua vida, renovou o mundo e a todas as pessoas que se incorporam à sua doação.
Depois da sexta-feira santa, celebramos o grande sábado como dia de espera. Antigamente, se chamava sábado de aleluia porque a liturgia romana antecipava já para amanhã do sábado a vigília que desde a década de 1950, portanto, antes mesmo do Concílio Vaticano II, a Liturgia já restaurou e colocou na noite do sábado para o domingo. Como, no século IV, afirmava Santo Agostinho, é a mãe de todas as vigílias da Igreja, o sacramento por excelência de nossa fé: a Páscoa da ressurreição.
Para nos prepararmos interiormente para a Santa Ceia:
A quinta-feira santa é o dia que nos chama a uma volta para a intimidade de Deus e para recuperar a intimidade mais profunda da aliança e da fé... De fato, sem dúvida, é pena que justamente, tantas vezes, as nossas Igrejas tenham perdido esse caráter de intimidade que, conforme os evangelhos, na sua última ceia com seus discípulos e discípulas, Jesus viveu. O evangelho de João coloca nos lábios de Jesus as palavras mais íntimas, mais carinhosas e ternas que jamais foram escritas.. No discurso durante a ceia, Jesus chama os seus discípulos e discípulas de Meus filhinhos, diz claramente: "Assim como o Pai me amou, eu amo vocês....". E durante quatro capítulos (do 13 ao 17), o Evangelho de João passa de uma declaração de amor a outra... Cada uma delas mais íntima e mais profunda. E todo este percurso tem uma preparação. No evangelho de Mateus, os discípulos perguntam a Jesus: Onde o Senhor quer que lhe preparemos a Páscoa? (Mt 26, 16- 17). Quantas vezes, chegamos à Eucaristia, sem nos preparar profundamente. E o evangelho diz que um determinado homem, cujo nome ninguém sabe, o texto não nomeia, põe à disposição de Jesus uma sala. A ele, basta que escute a palavra: O Mestre te manda dizer: O meu tempo chegou. Quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos em tua casa....
Meu Deus, que coisa incrível, esse homem, do qual nem sabemos o nome nem quem era, dispõe a sala e provavelmente (sendo o dono da casa) participa daquela ceia de Jesus com os discípulos e discípulas (as mulheres que os tinham acompanhado desde a Galileia). Preparar essa Páscoa é em primeiro lugar preparar e dispor a sala interior do meu ser. Como aquela sala que é interior a uma casa de família e que, ao que tudo indica, depois da ceia do Senhor, continuou a ser uma sala de uso cotidiano da família, agora, de certa forma transformado em lugar sagrado e que expressa a profunda intimidade com o Mistério Divino.
Será que isso indica que Jesus gostaria que nossas eucaristias fossem assim, como era nas primeiras comunidades cristãs, nas casas e de forma que não se separassem da vida cotidiana? Por que o evangelho colocou a palavra de Jesus sobre a traição de Judas e sobre a negação de Pedro no contexto da ceia? Será que está aludindo que isso (a traição ao projeto maior de Jesus) ocorre também conosco na Igreja, pelo modo de celebrar e de viver esse mistério? São questões que devem servir para a nossa reflexão e agir/ação.
Os evangelhos começam e encerram o relato da eucaristia com a “entrega”. Entrega da vida de Jesus, entrega feita por ele de si mesmo, mas também entrega que Judas praticou ao traí-lo... E a liturgia repete: Na noite em que foi entregue... Será que pela nossa forma de celebrar, temos alguma coisa a ver com essa entrega, que é a tradição da fé, mas às vezes, pode se tornar a traição da fé, como o evangelho diz a respeito de Judas? Assim como Jesus fez com Pedro ao advertir: Antes que o galo cante, você me negará três vezes.... , será que o galo não canta também nas nossas eucaristias? Será que os padres de hoje são capazes de ouvir o galo que canta para nos advertir a respeito das nossas pequenas ou grandes traições? Será que o papa Francisco ao nos advertir do pecado do clericalismo é um “galo” que não tem sido escutado?
Ainda, será que a proposta da Sinodalidade como forma de ser da Igreja (uma Igreja verdadeiramente eucarística no sentido de comunhão e de encontro tem alguma chance de ser aceita por padres que procuram e fazem questão dos primeiros lugares no culto, que parecem dar prioridade a vestes suntuosas, franjas, babados e fios de ouro, por jovens seminaristas e tantos leigos e leigas que gostam de celebrações ritualistas, autocentradas, auto-referenciais, distantes da realidade do outro/a e tendo por figura central o próprio clero?
O homem anônimo que abriu a sala superior de sua casa para Jesus celebrar a Páscoa a dispôs para "acolher"... Receber gente que ele nunca viu na vida, peregrinos que devem ter chegado sujos dos caminhos desde a Galileia, provavelmente as pesoas mais humildes daquela sociedade. Deste modo, a primeira eucaristia foi marcada pela partilha e as Igrejas primeiras a chamaram partilha do pão. Partilha vivida na tensão da anunciada prisão de Jesus e no anúncio de uma entrega, doação que é de todo o ser (o meu corpo) e da sua intimidade (o meu sangue). Quanto mais conseguirmos ser/estar em profundidade na interioridade do amor e da intimidade com Deus, mais seremos revolucionários/as como Jesus, na doação da vida e na radicalidade do anúncio de um reino divino que transforma todas as estruturas do mundo. É nisso que cremos e é isso que queremos testemunhar. Pela força do Espírito.
Em todas as dioceses católicas (de rito latino), na 5a Feira Santa, o bispo reúne os padres e representações das paróquias na Missa dos Santos Óleos, única celebração permitida na Quinta-feira Santa, antes da Missa da Ceia do Senhor que deve ser feita depois do pôr do sol deste dia. Nesta missa, o bispo consagra os óleos que a Igreja usará durante todo o ano (o óleo dos catecúmenos para os ritos batismais, o óleo para a unção das pessoas doentes e especialmente o Santo Crisma para a confirmação das pessoas batizadas e para as ordenações ministeriais). E desde o Concílio Vaticano II, na base da tradição que vê a ceia como tendo sido a instituição do sacerdócio ministério, costuma-se fazer nesta missa a renovação das promessas e compromissos dos ministros. Em geral, isso ainda é feito de forma muito clerical, separando ordenados e os/as cristãos/ãs não ordenados/as. Como se Jesus tivesse feito essa distinção. De fato, a missão de toda pessoa batizada, sem distinção, é recebida pela partilha que Jesus faz do Espírito que ele recebeu, Espírito que o ungiu e o enviou para anunciar o reino da libertação. Não é mais possível manter na Igreja essa divisão entre ministros ordenados e povo batizado, sem cair no Clericalismo que o papa Francisco condena.