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Páscoa em meio ao terremoto do mundo

Boa notícia em meio ao terremoto do mundo

              Estou convencido de que nenhuma palavra humana, nenhuma explicação racional seriam suficientemente capazes de expressar a beleza e o encanto que a noite pascal contém. Até hoje, a Vigília Pascal da noite desse sábado ou madrugada do domingo pode ser considerada, como dizia Santo Agostinho, “a mãe de todas as vigílias da Igreja”. No século III, os cristãos de Abilene no norte da África enfrentaram o martírio só para não ter de renunciar a celebrá-la. Não que eles reduzissem a experiência da fé ao culto. A razão é que eles sentiam necessidade da Vigília para alimentar a fé e um novo estilo de vida. Por isso, escreveram ao imperador: “Sem a vigília do Senhor não podemos viver”. 

Neste ano da graça de 2020, por todos os continentes, ministros e  fieis católicos estão sendo obrigados a descobrir formas leigas e domésticas de celebrar essa Páscoa, em meio à quarentena. Nessa vigília, acolhemos a boa nova da Páscoa, dada pelo amor divino, na resistência da Mãe Terra, das águas e da natureza. Vivemos essa Páscoa em meio à dor da perda de muitos irmãos e irmãs e de uma tragédia que o mundo nunca tinha antes passado. Mas, essa tragédia do coronavírus nos adverte de que no mundo no ano passado foram mortos oito milhões de pessoas e não pelo coronavírus e sim pela crise ambiental que o Capitalismo provocou. São quase um bilhão de seres humanos abaixo do nível da pobreza e expostos à fome e à miséria. Nenhum coronavírus do mundo é tão cruel quando os nossos governos e a elite que sustenta esse sistema. 

Mas, eles não podem nos impedir de celebrar a Páscoa, mesmo em nosso isolamento temporário. Cada em sua casa, contemplamos nessa noite a lua cheia, primeiro sinal da Páscoa. É Páscoa porque chegou a primeira lua cheia da nova estação (a primavera no hemisfério norte). Assim como essa lua é uma nova lua cheia, esta Páscoa também é uma Páscoa nova. Isso aparece na imagem do fogo novo, aceso para se começar a vigília. Neste ano, recolhidos em casa, a chama terá de ser de uma simples vela. Acolhemos a mensagem no louvor da água, mãe da todos os seres vivos. Acolhemos a Páscoa principalmente no alimento da Palavra de Deus. Meditamos nas muitas páscoas (passagens de Deus) em nossas vidas e na vida do povo bíblico. Escutando de novo a passagem simbólica da saída dos hebreus do Egito e da travessia do Mar Vermelho, nos comprometemos a retomar o nosso primeiro amor. Na fé bíblica, o primeiro amor ao qual Deus nos chama é a espiritualidade do Êxodo, ou seja, a opção espiritual pela caminhada da libertação. Participamos disso, movidos e guiados pelo Espírito, ventania que soprou e abriu o mar para os hebreus passarem, ventania que foi o Anjo do Senhor que, na madrugada de domingo,  removeu a pedra do sepulcro vazio de Jesus. É esse mesmo Espírito (sopro)  que nos faz retomar a caminhada de Maria Madalena e a outra Maria para ver, constatar o sepulcro vazio e sermos testemunhas da ressurreição hoje.

Nessa vigília, depois de retomarmos o cântico do Aleluia que na tradição latina, não dizemos durante toda a Quaresma, escutamos a boa nova da ressurreição que nos foi dada pela comunidade de Mateus (28, 1- 10). Diferente dos outros relatos da ressurreição, Mateus afirma que o Anjo do Senhor, o mesmo que antigamente soprou para dividir o mar e o povo hebreu passar, agora, desceu, removeu a pedra e se sentou sobre ela. E isso teria ocorrido em meio a um grande terremoto. 

Nesta Páscoa de 2020, a humanidade está vivendo o grande terremoto provocado pelo covid 19 e por todos os vírus que o egoísmo humano e a ambição provocam. Em meio a esse terremoto, ainda há padres, pastores e grupos cristãos que insistem em falar de Deus como se ele fosse culpado desse vírus. Ou se mesmo sem ser culpado, bastaria ele querer e poderia acabar com a epidemia e o mundo voltar a ser como era antes. Padres saem jogando água benta nas pessoas. Convocam-se jejuns para aplacar a ira de Deus. Parecem hoje, os novos guardas do governador que tomavam conta do túmulo de Jesus para ele ficar bem sepultado. Crentes de um Deus raivoso e de um Jesus vingativo, esses nada têm a ver com as mulheres que receberam a boa notícia da ressurreição. 

Somos chamados a continuar o caminho daquelas mulheres na madrugada desse dia novo que Deus deu para nós. Temos de testemunhar a pedra da sepultura removida e o Anjo do Senhor sentado sobre a pedra que esse terremoto não consegue abalar nem demover. Atualmente, muitos mensageiros (anjos) de Deus engravidam o mundo de ressurreição. Cuidam dos doentes, providenciam máscaras para a população carente e providenciam  marmitas solidárias para pessoas que estão na rua. Também são anjos da ressurreição, vocês, jovens que buscam e ensaiam novos estilos de vida. Não é fácil em meio aos escombros provocados pelo Capitalismo assassino, organizar novo projeto de vida e colocar esse projeto no rumo do testemunho do Cristo ressuscitado. 

Em toda a Bíblia ressurreição é como nova insurreição. Na profecia de Ezequiel (37), os ossos secos que retomam a vida formam um grande exército. Se o povo de Deus não se levanta como povo contra a escravidão e o império da morte que nos domina, ninguém ressuscita. Sem insurreição não há verdadeira ressurreição. Como canta Jonathan Silva canta no Samba da Utopia, “Se acontecer, afinal, de entrar em nosso quintal, 

                   a palavra tirania, pegue o tambor e o ganzá, 

                   vamos pra rua gritar a palavra Utopia”

Na Argentina, nos tempos da ditadura militar das mais sangrentas da América Latina, Maria Elena Walsh compôs e Mercedes Sosa imortalizou com sua voz uma canção que Renato Teixeira traduziu no Brasil: Como la cigarra. Nela escutamos a voz de cada um de nós, mas o eu dessa canção é principalmente o sujeito coletivo, protagonista de todas as resistências: povos indígenas, comunidades afrodescendentes, minorias sexuais e étnicas, todos que podem cantar assim:

“Tantas vezes me mataram, Tantas vezes eu morri

Mas agora estou aqui, Ressuscitando,

Agradeço ao meu destino E a essa mão com um punhal 

Porque me matou tão mal e segui cantando

Cantando ao sol, Como uma cigarra Depois de um ano embaixo da terra

Igual a um sobrevivente regressando da guerra. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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