Páscoa subversiva nos novos desertos da vida
De três em três anos, (ano B), do 17º ao 21º domingo comum do ano, o lecionário interrompe a leitura contínua do evangelho de Marcos e nos faz ouvir o capítulo 6 do evangelho de João. Neste XVII domingo, o texto escolhido é João 6, 1- 15 e conta a cena que, na tradição cristã, é conhecida como “multiplicação dos pães”.
É no final do primeiro século que a comunidade de João escreve o quarto evangelho como testemunho sobre Jesus. Organiza a sua narração a partir de várias festas que se celebravam no templo de Jerusalém, há décadas tinha sido destruído pelos romanos. No entanto, ainda no final do século, mesmo em meio à comunidade dos/das discípulos/as de Jesus, ainda havia cristãos e cristãs judaizantes, isso é, que, mesmo sendo discípulos/as de Jesus, mantinham aquela espiritualidade cultual e formal do templo.
O texto lido hoje começa dizendo “Estava próxima a Páscoa, festa dos judaizantes”. No evangelho de João, é a segunda referência à festa da Páscoa no templo. Em Jo 2, 13 ss, pela primeira vez como adulto, Jesus vai a Jerusalém e cria um verdadeiro reboliço no ambiente sagrado. Expulsa vendedores de animais para os sacrifícios e profetiza que o templo será destruído. Dessa vez, no lugar de agir como todo judeu piedoso e ir a Jerusalém para a festa, Jesus atravessa o mar e vai com a multidão para o outro lado do lago que o quarto evangelho chama de Tiberíades, ou seja, do império romano (Tibério era o imperador).
Para Jesus, quando se reduz a um rito no templo, a antiga festa que até hoje o Judaísmo chama “a festa da nossa liberdade”, se torna Páscoa dos judaizantes, isso é, dos chefes do Judaísmo do templo. É a Páscoa da religião que legitima o sistema social e político. Não é mais a Páscoa do Senhor.
Jesus só tem uma saída: refazer, ao menos, simbolicamente, o gesto de Deus alimentar o povo no deserto. Ele faz isso como sinal para indicar que a Páscoa de Deus ocorre sempre nos desertos da vida e com o povo, em caminho à terra prometida. O pano de fundo dessa cena da partilha dos pães no deserto é o episódio do maná do deserto.
Como os hebreus, Jesus também atravessa o mar com o povo e também vai ao deserto. No meio do deserto, sobe o monte ao encontro de Deus. Para o evangelho, não importa se, historicamente, o lago de Genesaré está a mais 200 metros abaixo do nível do mar e do lado leste não há nenhuma monte próximo. O importante é mostrar Jesus na montanha como Moisés no Sinai. Só que diferentemente de Moisés, Jesus não desce da montanha propondo uma lei. Nem espera o povo reclamar da fome para pedir a Deus o maná do deserto. Jesus coloca o alimento em primeiro lugar e provoca os discípulos para providenciarem comida para o povo.
A comunidade de João era toda ministerial. Nos seus 20 capítulos originais, o evangelho, nunca chama ninguém de apóstolo. Quando fala dos discípulos quase sempre o faz no coletivo. Essa narração é das pouquíssimas nas quais se refere a dois nomes concretos: Filipe e André. São discípulos de nome e cultura estrangeira, isso é mais abertos ao povo do outro lado do lago. E o discipulado deles consiste em providenciar comida para o povo. Um deles pensa em comprar, mas Jesus mostra que a solução não é comprar e sim repartir. E aí o milagre é ter aparecido o rapazinho que tinha consigo dois pães de cevada, o pão acessível aos mais pobres (não era de trigo) e dois peixes, provavelmente secos (estavam no deserto).
Quando hoje penso nas juventudes e adolescentes que estão se organizando por vacina no braço e comida na mesa, penso nesse menino ou rapazinho que o evangelho disse que pôs à disposição de Jesus os cinco pães e dois peixes. (Uma tradição francesa retomada no Maranhão diz que esse adolescente era São Marçal, do qual historicamente, ninguém sabe nada).
Em todo o evangelho de João, é a única vez na qual se diz que Jesus fez eucaristia (usa o verbo em grego: dar graças). Quando conta a última ceia, o quarto evangelho não utiliza esse termo e substitui o relato da instituição da ceia pelo lava-pés. Talvez o evangelho queira se distanciar de um ritualismo litúrgico que mesmo na Igreja do final do primeiro século ainda reproduz o mesmo espírito dos cultos do templo judaico ou da religião imperial romana. O certo é que, de acordo com esse texto: “Jesus tomou os pães, pronunciou a eucaristia (deu graças), distribuiu os pães aos que estavam sentados, tanto quanto eles e elas queriam” (Jo 6, 11).
É sempre bom nos questionarmos se as eucaristias que celebramos têm esse teor e essa preocupação da partilha! O evangelho de João só reconhece como Páscoa aquela que ajudar o povo faminto a se fortalecer na sua caminhada libertadora. Para nós, algo como a Campanha da Fraternidade Ecumênica não é acidental. Não pode ser cereja posta no bolo da Quaresma e da Páscoa. A CFE não é algo que pode ou não pode acontecer. São ações de solidariedade como a CFE que dão a nossas celebrações sua veracidade evangélica e pascal. Que pena que, no decorrer dos tempos, a celebração da ceia de Jesus perdeu o seu caráter de refeição e se tornou culto sacrificial.
É preciso novamente hoje fazer como Jesus: no lugar de ir à Páscoa do templo, fazer Páscoa no deserto, com a multidão de pessoas excluídas ou ignoradas (na prática, deserdadas) pela sociedade dominante, mas também por muitos pastores e grupos de Igreja, esses que agora preparam para, logo que for possível, depois do intervalo desse papa diferente, retomarem a volta à grande disciplina e à idolatria da “Páscoa dos Judaizantes de hoje”.
Na América Latina e Caribe, essa Páscoa no deserto é lembrada pela geração de jovens que em Cuba nos anos 1950 deram a vida para que o povo seja livre e fizeram de Cuba o primeiro território livre das Américas, como diz o cartaz no aeroporto para todos e todas que ali chegam. Toda a América Latina espera que nossas Igrejas escolham se vão continuar com a Páscoa dos Judaizantes vendidos ao império ou se ousamos celebrar juntos a Páscoa da partilha no deserto do mundo atual.