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Passar da justiça da lei a do reino do amor

VI Domingo Comum – Mt 5, 17-37

                                                     Passar da justiça da lei à do reino de amor

 

Neste 6º domingo comum (ano A), o evangelho continua a narrar palavras de Jesus, que a comunidade cristã dos anos 80 reuniu no discurso da montanha (Mt 5, 17- 37). Nelas, Jesus explica que não veio abolir a lei e os profetas, ou seja, a instituição religiosa. Jesus não quer abolir a religião, mas propõe que ela tenha a sua função em um projeto que vai além de si mesma. Jesus critica a religião que se torna totalitária e nos dá uma visão redutiva e deformada de Deus, que é puro Amor gratuito, incondicional e universal.

Nos anos 80 do primeiro século, em comunidades formadas por pessoas de origem judaica, este evangelho reuniu essas palavras para mostrar que a proposta de Jesus não é de ruptura com a religião institucional, nem com a cultura do povo. No entanto, ele pede aos discípulos e discípulas que se tornem capazes de ir além da instituição. Procurem não o simples cumprimento da lei, mas o espírito que a lei visava. Hoje, Jesus pede a mesma coisa aos cristãos e cristãs dos nossos dias. Parece que, nas Igrejas atuais, essa proposta de Jesus não recebe adesão maior do que ele teve com os seus discípulos, dos quais o evangelho de Marcos afirma claramente que os apóstolos não compreendiam o que ele dizia. 

Atualmente, o papa Francisco fala de  “Igreja em saída”. De certa forma, era o que Jesus propunha nos evangelhos: uma lei “em saída”, ou para fora de si mesma. Quando a lei se torna o eixo central da fé, ela se torna sagrada, absoluta. Serve apenas ao grupo de poder que a produziu. No mundo atual, se chama Fundamentalismo. Nas mais diversas religiões, é um dos movimentos que mais cresce. Existe fundamentalismos bíblicos, outros teológicos e políticos. Existem fundamentalismos judeus, muçulmanos, hinduístas e em outras religiões. 

O evangelho mostra que Jesus combateu esse modo de interpretar a fé. Depois de revelar nas bem-aventuranças uma espécie de programa de Deus ao estabelecer o seu reinado sobre o mundo, Jesus quer dar alguns exemplos de como realizar essa inversão social e humana trazida pelas bem-aventuranças. E aí dá seis exemplos de situações, nas quais quem entra nos caminhos das bem-aventuranças deve seguir. Retoma normas judaicas que  não quer abolir ou substituir, mas propõe sim uma radicalização na linha do Espírito. Começa pelo mandamento de não matar. Não basta respeitar a vida. É preciso defendê-la. Quem quer viver a justiça nova do reino não pode se deixar dominar pela ira, nem condenar um irmão ou irmã através de  alguma palavra má; aquilo que antigamente o povo considerava maldição ou "rogar praga" e desejar mal a outra pessoa  (Cf Mt 5, 21- 26). Naquela sociedade na qual a mulher podia ser repudiada pelo marido simplesmente porque ele preferia trocar de mulher, o evangelho defende o direito da mulher e insiste na igualdade de gêneros. Assim também, propõe  confiança na palavra dada, de tal forma que o juramento seja desnecessário e proscrito. 

Jesus propõe que superemos a divisão das pessoas em boas e más e reconheçamos a dignidade e direitos até dos nossos adversários. O marido cuide da esposa, mesmo quando, por acaso, não a ame mais. Como Gandhi ensinava na sua ação libertadora não violenta, Jesus propõe desarmar o alguém que nos odeia com o mesmo respeito e atenção ao que ele nos pede. A nossa missão é testemunhar um amor divino. E quando fazemos isso, a lei serve para nos ajudar a construir novas relações sociais. Aí sim a atenção ao irmão vale mais do que as oferendas apresentadas no altar. 

Na sociedade da época de Jesus e dos evangelhos, a palavra tinha muita importância e força. Hoje, a publicidade e a comunicação banal esvazia a força das palavras. Quantas vezes, as palavras não são sem consequências. Ao contrário: quantas vezes, nas comunidades, uma palavra falsa e injusta sobre alguém destrói profundamente o outro e as relações. Uma comunidade de vida pode ser destruída apenas pelo uso irresponsável e imprudente da palavra contra o outro. Por isso, de fato, Jesus exige muito cuidado com as palavras que usamos. A Ética da Libertação social e política exige também uma profunda e permanentemente cuidadosa Ética das relações familiares, de amizade e nas comunidades. Muitas vezes, mesmo nós que nos dizemos “da libertação”, somos anti-éticos/as no modo de comentar sobre outras pessoas e pecamos gravemente contra esse evangelho.

Nesse evangelho de hoje, Jesus nos adverte para nem chamar a outra pessoa de “sem juízo”. O termo usado no texto grego é raka,  que significa “não serve para nada”. E outro termo grego é “estar fora”. Às vezes, nas comunidades, há pessoas excluídas pela fama que se espalhou delas e nem podem se defender. Simplesmente são condenadas e por companheiros/as que se dizem “da caminhada”. Hoje, a sociedade dominante considera todos os pobres como pessoas que não servem para nada. O papa denuncia que o mundo os considera como descartáveis. 

Outro assunto é o desejo  ou libido (5, 27- 30). Tomar consciência do nosso desejo é poder reorientá-lo e buscar unir aquilo que cremos com aquilo que queremos. No sermão da montanha, Jesus nos diz que o querer mal já é de certa forma realizar o mal. Desejar alguém sexualmente já tem algo de posse. Nós não somos inteiros sozinhos. Precisamos do outro, mas não podemos fazer deste outro objeto de nosso desejo. Temos de lidar com o desejo, de modo que respeitemos o outro como outro. 

Desde antigamente, a Bíblia proibia jurar em nome de Deus (Ex 20, 17). O que está por trás é a força da palavra. Gandhi usou a força da verdade como instrumento da sua luta não violenta. Jesus diz: seja o seu sim, sim e o seu não. Quem jura em nome de Deus, age como se tivesse recebido procuração de Deus para falar em seu nome. É a tentação das religiões. Jesus adverte: ninguém deve usar o nome de Deus para fortalecer seus interesses próprios e as causas que defende.  

É comum as pessoas confundirem radicalidade com rigorismo. De fato, são duas atitudes muito diferentes. Radicalidade significa ir à raiz das questões e, portanto, possibilita flexibilidade, liberdade e amor. A radicalidade sempre se compõe com liberdade interior e social. Na maioria das vezes, o rigorismo se reduz a um fundamentalismo estreito e fechado. Mas, no dia a dia, será que conseguimos distinguir quando estamos sendo radicais no sentido evangélico e, quando, ao contrário, estamos simplesmente sendo rigorosos e fechados? 

O evangelho de hoje nos interpela no sentido de unir a coerência evangélica com a radicalidade (ir à raiz das questões) e, ao mesmo tempo, mantermos a abertura humana para colocar a outra pessoa como referência desse caminho em direção ao reino. Atualmente, é frequente vermos grupos de esquerda que propõem mudanças estruturais e se centram nas análises coletivas e institucionais. Ao mesmo tempo, grupos espiritualistas pensam que se podem mudar sistemas se se consegue mudar o pensamento e sentimento íntimo de cada pessoa. O evangelho nos adverte que temos sempre de unir as duas dimensões e cuidarmos tanto da dimensão subjetiva, quanto das mudanças estruturais necessárias. Nesta dialética, caminhamos para uma nova Ética social e revolucionária, sempre baseada no Amor Maior. 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

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