Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Passar do pão da vida ao Pão Vivo

XIX Domingo comum B: Jo 6, 41- 51. 

Passar do pão da vida ao Pão Vivo

                 “Eu sou o pão da vida. No deserto, os vossos pais e mães  comeram o maná e morreram. Mas este pão é o que desce do Céu, para que a pessoa que dele comer não morra. Eu sou o Pão Vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que Eu hei de dar é a minha carne, dada pela vida do mundo” (Jo 6, 48 – 51). 

               Neste XIX domingo do ano, o evangelho proposto é João 6, 41- 51, cena de discussão entre Jesus e pessoas da comunidade cristã ligadas à tradição judaica do templo. O quarto evangelho não conta a benção que, na última ceia, Jesus fez ao pão e ao vinho. Conforme o quarto evangelho, toda vez que Jesus faz um sinal de amor e de salvação, os religiosos do templo e as pessoas ligadas à religião ritual reagem negativamente opondo o sinal de Jesus e a tradição antiga. 

Até o domingo passado, a discussão era entre Jesus e a multidão que ele encontrou “do outro lado do lago”, isso é, fora das estruturas da religião e da cultura judaica da época. A aquelas pessoas, Jesus pede que distingam o sinal (sacramento) da realidade. Valorizem o sinal como sinal, mas compreendam que a meta é a realidade e é preciso não se deter no sinal. 

No trecho do evangelho de hoje os interlocutores mudam. Já não é a massa de gente sem religião e sim aqueles que o quarto evangelho chama de “judeus” ou “judaítas”. Historicamente, seriam os judeus que viviam na Galileia e naquele território de fronteira. Provavelmente, quando esse evangelho foi escrito, se referia aos cristãos judaizantes, ou seja, as pessoas que eram membros da comunidade cristã, mas continuavam apegadas à lei e às tradições judaicas, como se essas fossem a salvação. 

Jesus tinha dito a essas pessoas presas à religião ritual: o pão partilhado é sinal de algo maior. Aprendam a ir além dos sinais. Ainda hoje, quantas vezes, nós mesmos, católicos ou evangélicos, ficamos presos aos sinais e não conseguimos ir além. Não seria essa a doença dos religiosos tradicionalistas, presos ao sacramentalismo e aos legalismos da religião?

A Bíblia conta que, antigamente, no deserto, os hebreus que Moisés tinha conduzido para fora do Egito murmuraram contra Deus e contra Moisés. Agora, esse evangelho conta que, também no deserto, os cristãos presos à lei e aos ritos murmuravam contra Jesus. Hoje, as murmurações se tornam fake news. São, por exemplo, vídeos de acusação contra o papa Francisco e contra bispos, padres e comunidades que ousam ir além da tradição. De acordo com o evangelho, Jesus aceita as perguntas, acolhe as dúvidas. No entanto, se ofende quando as pessoas murmuram. 

Murmurações são ruídos de comunicação (murmúrios) que impedem ou dificultam a comunicação transparente e direta. A murmuração pode tomar o jeito de fofoca, ou simplesmente de críticas que são ditas, mas não assumidas. Isso dificulta a caminhada comum. No século VI, na Regra para os mosteiros, São Bento enumera dois  pecados, que ele considera como as atitudes mais prejudiciais à vida comunitária. O primeiro é se apossar privadamente do que deveria ser comum. O segundo pecado é semelhante, só que no lugar de ser com coisas materiais a apropriação privada se dá pela comunicação. Trata-se da murmuração. Murmurar é diferente de fazer crítica, ou questionar. Críticas e questionamentos são úteis e necessários. A murmuração, não. É feita por trás, ou de forma escondida. Trai a confiança e quebra a comunhão. 

No caso deste evangelho, o motivo da murmuração é Jesus ter dito: eu sou o alimento que Deus dá para a vida de vocês. As pessoas, apegadas à lei e à letra da Bíblia, perguntavam: Como ele pode se comparar com o profeta Moisés? Como pode dizer que vem de Deus se é um homem igual a nós? Nós conhecemos a sua origem pobre, o vimos crescer em Nazaré. Conhecemos sua família. 

Até hoje, a humanidade de Jesus e dos profetas pode ser vista como obstáculo para as pessoas crerem. Quem conheceu mais de perto Pedro Casaldáliga, lembra que, na pessoa dele, o que mais chamava a atenção, não eram, em primeiro lugar, discursos e ações. Era o seu olhar, os pés descalços, o corpo frágil e a sua humanidade. Ainda nos anos 1970, ele escrevia em um breve poema: 

Por esse simples fato

de ser também bispo,

ninguém irá me pedir

– assim espero, irmãos –

que eu deixe de ser

um homem humano.

 Todos nós vivemos porque nos alimentamos. O alimento em nós se transforma em sangue e energia de vida. Quando nos alimentamos mal, ou de forma desequilibrada, adoecemos. Também no plano interior e espiritual, também precisamos nos alimentar ou receber de Deus nossa energia. Ao se colocar como “alimento vindo de Deus para a vida do mundo” e nos mandar comer, ou seja, assimilar a sua carne, ou seja, a sua pessoa humana, hoje, Jesus nos interroga sobre qual energia nos alimenta e anima. Podemos nos alimentar de nós mesmos e do nosso próprio eu. Hoje, somos de novo chamados e chamadas a nos alimentar de Jesus e do seu projeto de vida e o seu testemunho do reinado divino no mundo. Ele não somente nos dá o pão da vida que é a sua palavra e a eucaristia, mas Ele se dá a si mesmo como Pão Vivo que alimenta e dá energia de vida e amor a toda pessoa que o segue e a toda a humanidade. 

Ontem, no Brasil, as comunidades da caminhada celebraram os 50 anos do martírio do Frei Tito Alencar que aos 29 anos parte para Deus, como consequência da tortura infligida pelo Delegado Fleury, representante da Ditadura Militar. Hoje, no Brasil, não há mais ditadura militar e ninguém é torturado como preso político. No entanto, no Mato Grosso do Sul, o CIMI denuncia: 

Dourados, MS. As retomadas de terras Guaraní e Kaiowa, Kurupa Yty  e Pikyxyin estão sendo violentamente atacadas por ruralistas e capangas neste exato momento. Há vários feridos a bala de borracha e armas letais no local, também há grande concentração de camionetes em torno da comunidade Yvy Ajere. A Força Nacional simplesmente se retirou do local e deixou as comunidades desprotegidas ao ataque das milícias rurais. Estão atirando no pescoço e no coração das pessoas. Tem muitas crianças e idosos no local e até o momento recebemos informações de que há pelo menos dez graves feridos. A comunidade pede socorro, eles estão totalmente abandonados.

Que Deus nos ilumine para nos organizar na solidariedade aos povos indígenas ameaçados em sua integridade física e cultural e nos faça ver nas pessoas e nas comunidades a presença do Cristo como Pão Vivo dado para a vida do mundo. 

 

 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações