Pecados do Espírito, bênçãos da carne”
Um irmão (que não conheço pessoalmente) me escreve se queixando de que os comentários que aqui escrevo a cada domingo são por demais pessoais e expressam mais o meu pensamento (que ele chama de “singular e diferente dos outros) do que o ensinamento objetivo que o evangelho quer dar. De fato, o que você afirma é correto. O que faço aqui é simplesmente a partilha de uma meditação pessoal. Não pretendo escrever homilia litúrgica, nem comentário exegético do texto. Esses comentários, nós já temos em boa quantidade em livros e mesmo partilhados na internet. O que faço é simplesmente reagir à palavra meditada a partir da vida (minha e do povo), dos acontecimentos e de como interpreto o evangelho e a fé. Quem quiser coisa bem melhor, tem semanalmente os comentários do CEBI (Centro de estudos bíblicos) enviados pela internet ou encontrados em seu blog.
Nesse domingo, como no anterior e ainda no próximo, a liturgia nos faz ouvir o discurso de Jesus sobre o pão da vida. Quando se lê a primeira vez parece uma discussão repetitiva e insistente que a Igreja lê para falar sobre a eucaristia. O texto me faz lembrar as discussões teológicas que tanta divisão provocaram na Idade Média. No filme “O estranho caminho de São Tiago” (La voie lactée), Louis Buñuel mostra dois homens duelando à espada para decidir se Jesus está realmente presente na hóstia ou não. Na época do evangelho de João, ainda não havia essas afirmações dogmáticas da Idade Média, mas de fato, o evangelho diz que os judeus discutiam entre si (o verbo usado é o mesmo que murmuravam). Nicodemos tinha perguntado a Jesus: Como pode se nascer de novo? Agora os judeus não perguntam a Jesus, mas discutem entre eles: “Como ele pode ter vindo do céu se nós conhecemos seu pai e sua mãe? O termo judeu aí é simbólico, como é simbólico dizer que eles murmuravam. É o mesmo termo usado pela Bíblia para falar da murmuração dos hebreus no deserto quando Deus lhe deu o maná (Ex 16). No Êxodo, o assunto da murmuração é o próprio projeto divino da libertação. (“Para que nos tirou do Egito? Para morrer de fome no deserto? Não teria sido melhor continuarmos escravos no Egito onde ao menos tínhamos o que comer?) Agora no evangelho, os que representam esses mesmos judeus (podem ser até discípulos de Jesus e nem serem judeus de nascimento) têm dificuldade de aceitar Jesus como pão da vida.
Esse torna a questão ainda mais difícil porque fala em comer a sua carne e beber o seu sangue. Além da imagem escandalosamente antropofágica (isso deu tantos problemas e até hoje as pessoas imaginam uma presença física de Jesus na hóstia e, como se queixava Dom Helder Camara, se descuidam totalmente de que ser alimento para a vida é muito mais do que isso).
O evangelho piora as coisas ao trocar o termo corpo (em grego soma) por carne (sarx). Aceitar comer carne e sangue de alguém é impossível para a cultura judaica. Os judeus mais ortodoxos nem podem tocar em sangue e a lei mosaica os proíbe de comer carne misturada com sangue (Lv).
Essa palavra parece uma resposta de Jesus aos judeus que diziam “Nós conhecemos os seus pais, sabemos quem ele é”.Jesus responde: Ou vocês aceitam a minha realidade humana concreta (carne) ou não há dom divino. O Espírito se manifesta na vida em todos os seus aspectos corporais e reais (sem divisão entre corpo e espírito, entre fé e vida, entre o pessoal e o social).
Quantas mães e pais (no Brasil, esse domingo é o dia dos pais) vivem literalmente isso. São carne e sangue doados para que os filhos (e às vezes, também netos) vivam, cresçam e sejam pessoas novas e feitas de amor. Quantas pessoas vivem isso nas lutas sociais. Será que não podemos ver uma imagem disso nos irmãos de diversos movimentos sociais que nesses dias estão em Brasília fazendo uma greve de fome (já há vários dias) para denunciar a fome no Brasil, para pedir basta a essas políticas contra o povo e exigir a liberdade de Lula?
Como eu compreendo, o evangelho diz que quem quer ser discípulo/a de Jesus tem de “vir a mim”. Isso no concreto da comunidade de fé significa participar da comunidade (ninguém é cristão sozinho e isolado). Na comunidade, “comer a carne e beber o sangue” é de fato significado pela ceia de Jesus que é essencial e tem a função de nos fazer assumir o jeito de ser e o projeto de Jesus. Esse projeto é o mesmo de Deus no Êxodo, mas de um modo novo, mais universal e mais radical. Trata-se do projeto de libertação (como no Êxodo) mas vai além – é um projeto de construir a VIDA com letra maiúscula. Tornar-se como Jesus pão da Vida é contribuir para que a fé nos torne construtores/as de vida nova e plena para todos/as.
No Brasil de hoje, se eu fosse responsável pela pastoral, teria proposto que nesse domingo, todas as comunidades cristãs celebrassem “o dia do basta” como nessa sexta-feira (10), os trabalhadores/as fizeram na maioria de nossas cidades. No Brasil, a fome está voltando e a cada dia aumenta o número de pessoas que estão nas ruas porque não têm como sustentar casa sem emprego. Nessa realidade, como fazer de cada uma de nossas eucaristias sinais de partilha de vida, de alimento e de caminho de libertação?