Blog Aqui vamos conversar, refletir e de certa forma conviver.

Pelo sofrimento aprendeu a ser Filho

Paixão de Jesus Cristo segundo Marcos -    Mc 14, 1 – 15, 47.

“Pelo sofrimento aprendeu a ser Filho”

         No Domingo de Ramos, a liturgia latina reúne o ato litúrgico da bênção e procissão de ramos com o evangelho próprio que nesse ano é Marcos 11, 1- 10 e mantém como leitura da missa o relato da paixão de Jesus segundo Marcos (Mc capítulos 14 e 15). A narrativa da paixão no evangelho de Marcos é a mais breve e mais sóbria das narrativas. Provavelmente, foi a primeira narração que os discípulos e discípulas fizeram da paixão de Jesus e que foi recolhida por um evangelho. Provavelmente, na sua primeira redação, o evangelho que hoje chamamos de Marcos era só o relato da paixão e ressurreição de Jesus. Os capítulos anteriores foram sendo acrescentados para melhor explicar a paixão que suscitou escândalo e dificuldade de ser compreendida pela comunidade de discípulos e discípulas.

O relato é direto e centrado nos fatos. Começa por contar que Jesus vai à Páscoa em Jerusalém, mas talvez até por motivos de segurança, se hospeda na aldeia de Betânia, que era próxima. Marcos conta que, enquanto o clima de ódio e de violência já desaba sobre Jesus, por parte dos religiosos do templo, uma mulher (que Marcos deixa no anonimato) unge Jesus na cabeça com um perfume caríssimo. (O quarto evangelho diz que essa mulher foi Maria, irmã de Marta e Lázaro, que não deve ser confundida com Maria Madalena, nem com a mulher adúltera do evangelho de Lucas). 

O importante para o evangelho é que a paixão de Jesus começa por um ato de amor, de carinho gratuito e de imensa ternura. De fato, em português, usa-se o termo paixão para expressar o sofrimento, mas também para indicar o amor apaixonado. No evangelho, o amor apaixonado de uma mulher é o primeiro gesto profético que anuncia a ressurreição de Jesus. 


Jesus explica que aquela mulher cumpria um gesto profético. Em geral, eram os profetas que ungiam reis e sacerdotes. A mulher unge Jesus, enquanto ele ainda está vivo, já que não haverá tempo para ungi-lo morto, pois antes ele já teria ressuscitado. O relato da paixão em Marcos começa  e termina citando as mulheres, amigas de Jesus. Esse gesto de amor é importante porque, conforme Marcos, o maior sofrimento de Jesus na paixão nem parece ter sido físico. Foi a solidão total, o absoluto abandono. 

Depois que conta a unção em Betânia, o evangelho conta a ceia pascal. Marcos deixa claro que Jesus a celebra na sala emprestada por um amigo e um dia antes do calendário litúrgico correto. É possível que isso signifique que a ceia pascal de Jesus foi a de um grupo dissidente, considerado herético pelos chefes do templo. É como hoje, grupos e comunidades cristãs que celebram o ágape eucarístico de forma mais livre. Provavelmente, foi por isso que no relato da ceia pascal de Jesus não aparece menção ao cordeiro. Parece que eles não puderam comer o cordeiro pascal naquela ceia, porque, como anteciparam a ceia, não podiam pedir que, no templo, os sacerdotes imolassem o cordeiro para eles, um dia ou dois, antes da data certa. no templo. Podiam sim fazer a ceia com pão e vinho. Na época de Jesus, a ceia era celebrada na intimidade da família. Jesus celebra com o seu grupo de discípulos e discípulas. Com eles vive essa profusão de amor. Mas, o evangelho mostra que, mesmo assim, os discípulos e discípulas, ali presentes, não conseguem penetrar no espírito do amor de Jesus. Durante a ceia, os discípulos têm outros pensamentos e preocupações  Jesus sabe disso e lida com isso. Só Marcos apresenta a cruz como verdadeiro escândalo para os discípulos (14, 27).  

 

Pouco a pouco é abandonado por todos os discípulos, um discípulo o traiu, o outro negou por três vezes que o conhecia. Marcos conta que, no horto, na hora em que Jesus é preso, um rapaz que estava vestido só com um lençol branco, deixa o lençol e foge nu. Jesus não conta com ninguém. Resiste a tudo, em silêncio. Nenhuma palavra. Diferentemente de Mateus, Lucas e João, Jesus nunca fala nada, nem ao sumo-sacerdote, nem ao governador romano. Em todo este relato da paixão, a única palavra de Jesus foi o grito de lamentação do salmo 22, que Jesus teria orado na cruz antes de morrer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.

Desde o começo, ele pedia segredo sobre a sua identidade mais profunda. É o que os estudos chamam de segredo messiânico. Só quando Jesus já tinha morrido, o centurião romano que estava ao pé da cruz, é o único que confessa: “este homem era o filho de Deus”. Só naquela realidade extrema de abandono, Jesus se revela filho de Deus. 


Hoje, o que isso pode significar de boa notícia para a nossa vida?  Meditar esse evangelho da paixão deve não apenas provocar um ato emocional de compaixão pelo que Jesus sofreu. Não basta isso. É essencial que a proclamação desse evangelho hoje nos ajude a reconhecer em cada pessoa abandonada e humilhada em sua dignidade humana e seus direitos, o rosto de Jesus que continua sendo crucificado pelos poderes do mundo na pele  e no corpo de milhões de pessoas que, no mundo atual, constitui uma multidão de oprimidos/as nas diversas formas de cruzes que os impérios de cada dia criam para salvaguardar seus privilégios. 

Nesse ano em que celebramos o Domingo de Ramos na mesma data do martírio de Oscar Romero, lembremos do povo de El Salvador que acaba de reeleger um governo populista de direita que ganha eleições fazendo propaganda de quantos bandidos matou e quantos marginais colocou na prisão, isso para manter a desigualdade social e os privilégios da elite do país. Ao ouvir a paixão de Jesus nesse domingo, recordamos também o povo palestino, especialmente, mulheres e crianças, martirizados em Gaza e em nome do fundamentalismo bíblico e do privilégio de Israel, que se arvora como povo eleito de Deus que privilegia Israel e mata palestino. 

O jovem teólogo uruguaio Diego Pereira Ríos afirma: “A paixão de Jesus significa assumir e tomar como responsabilidade própria a realidade do outro (dos outros) para buscar libertá-los de tal situação de dor e opressão. Essa é a tarefa realizada por Jesus. E o único caminho para conseguir fazer isso é o amor apaixonado de um amor amante. Se há algo que nos salva neste mundo é o amor”[1]

Hoje a paixão de Jesus continua no martírio da Terra, nossa casa comum, da Água, mãe da vida e de toda a natureza que nos cerca, cujo dia mundial, celebramos anteontem.  O que o relato de Marcos quer aprofundar é que a revolução que muda o mundo não pode ser apenas mudanças de estruturas do Estado ou da religião, mas tem de garantir o seu núcleo na transformação das relações humanas a serviço do Amor e da Vida.  

 



[1] - PEREIRA RÍOS, Diego, La pasión de Jesús: Reflexiones teológicas para la comunidade. (No prelo). 

Marcelo Barros

Camaragibe, Pernambuco, Brazil

Sou monge beneditino, chamado a trabalhar pela unidade das Igrejas e das tradições religiosas. Adoro os movimentos populares e especialmente o MST. Gosto de escrever e de me comunicar.

Informações