XXXIII Domingo Comum: Mt 25, 14- 30.
(Dia Mundial dos Pobres)
Neste XXXIII domingo do ano, o evangelho de Mateus 25, 14- 30 nos traz a chamada “parábola dos talentos”. Uma parábola estranha que entendida ao pé da letra pode ser compreendida como legitimação do Capitalismo: é importante fazer render os talentos, ou seja, o dinheiro recebido, de modo que se restitua ao rico o dobro do que ele investiu. Infelizmente, é provável que, hoje, na maioria dos púlpitos católicos e protestantes, esse seja o tipo de discurso mais ouvido e aplaudido.
Ao contrário, neste domingo, celebramos o Dia Mundial dos Pobres, proposto pelo papa Francisco. O evangelho proclamado na celebração desse dia deve nos ajudar a fortalecer a comunhão com os pobres. No entanto, compreendido ao pé da letra, esse evangelho parece contrário a tudo o que o próprio Jesus disse no mesmo evangelho de Mateus.
Como outras parábolas, essa também compara Deus ou o próprio Jesus com um homem muito rico. Os estudiosos dizem que na época de Jesus, cada talento valia 6 mil denários e o salário diário de um trabalhador era um denário (Warren Carter, p. 606). Então, se o tal rico tinha oito talentos, era como se tivesse a soma equivalente ao salário de quase 20 anos de trabalho de um lavrador. Pior ainda, a parábola diz que o tal rico é “um homem duro, severo, que quer colher onde não plantou e ajuntar onde não semeou’(v. 24). É a experiência que o mundo sempre teve com o modelo de economia, baseado no lucro e na exploração do trabalho do outro. É uma sociedade sem solidariedade e sem compaixão. Além disso, conforme o texto do evangelho, o tal homem, além de rico e mau, é fingido. Finge ser honesto.
Na cultura da época, cobrar juros era desonesto. Na sociedade judaica, quem cobrava juro era publicano e amigo de romanos. Um homem honrado não podia deixar que descobrissem que ele cobrava juros de empréstimos. Como o sistema sempre encontra escapatória para o poder, os senhores não se envolviam em cobrança de juros para não serem considerados desonestos. Faziam isso através de escravos. Afinal, um escravo não tinha mesmo nenhuma honra a preservar. Os ricos confiavam o dinheiro a escravos de confiança e eram esses que cobravam juros para os seus proprietários (Bruce Malina e Richard Rohrbaugh, Evangelhos Sinóticos, Paulus, p. 143). Hoje, no Brasil e em outros países, muitos ricos recorrem a “laranjas” e outros expedientes para continuar a ser vistos como homens honrados.
O evangelho de Mateus, escrito pelos anos 80 do primeiro século da nossa era, reflete a crise das comunidades cristãs que esperavam a parusia (a prometida manifestação de Jesus e a vinda do reino) e essa parecia nunca chegar. Era isso que a comunidade de Mateus queria destacar com essa parábola do evangelho: como reagir ao fato de que o reino de Deus prometido está demorando tanto e o mundo parece cada dia pior. Não podemos fazer leituras fundamentalistas da parábola. É bem o que essa parábola descreve bem: “O senhor viajou para muito distante e demorou a voltar”(v. 19).
De acordo com o evangelho, como sempre fazia, Jesus aproveitou um fato ocorrido na época para tirar dele alguma lição para a comunidade cristã dos anos 80. Infelizmente, a interpretação da parábola para justificar a ética da burguesia é tão comum que a própria palavra “talento” tornou-se em nossas línguas sinônimo de “dom natural”. Comumente as pessoas dizem que você tem ou não tem talento para tal coisa. Existe até o adjetivo “talentoso”. Ser talentoso é questão de dom natural.
No contexto do evangelho, a parábola nada tem a ver com dons naturais. Se entendêssemos assim, os ricos de hoje seriam como o servo que ganhou cinco talentos e foi capaz de fazê-lo render outros cinco. E os pobres teriam sido retratados no servo que ganhou menos e acabou enterrando mesmo o pouco que recebeu. Assim, o evangelho se torna sacralização do capitalismo. Embora a tradução da CNBB comece a parábola no verso 14 com as palavras: “O reino dos céus é também como um homem....”, essa expressão “reino dos céus” não aparece na maioria das versões, embora possa se supor. A tradução do padre Alonso Schokel diz simplesmente: “é como um homem” e outras traduções: “será como....”. Certamente, Jesus nunca compararia Deus com o tipo de senhor ou patrão narrado nessa história.
Nas comunidades antigas falar de “servos” era referir-se aos ministros cristãos. Na história das dez moças, que Mateus conta antes dessa parábola, o evangelho insiste no dever de esperar vigilantes. Agora, nessa parábola, o evangelho propõe um passo a mais. Não basta só vigiar com o óleo nas lâmpadas. Além disso, é preciso trabalhar para fazer render a riqueza que Deus nos confiou. Se o reino não vem logo é para dar tempo a que façamos os valores do reino de Deus se multiplicarem.
A parábola é sobre o rendimento do empenho dos servos aos quais o Senhor confiou a boa notícia do reino. A história não se detém sobre o valor ou significado dos talentos. O talento que Deus nos confiou foi o seu Evangelho, a fé e o testemunho do seu amor que devemos comunicar a toda humanidade. O contexto é como a parábola diz: “Após um longo tempo…”
Neste Dia mundial dos Pobres, o talento que Deus nos confia para cuidar são exatamente as próprias pessoas dos mais pobres. Quem faz os talentos renderem são os cristãos e cristãs inseridos nos movimentos sociais, nas comunidades pobres. O julgamento de Deus sobre quantos talentos cada servo vai devolver se concretiza no esforço que fazemos para que o mundo seja mais igualitário e as Igrejas colaborem para o reconhecimento da dignidade de todos os cidadãos e cidadãs do nosso país e da Terra.