XXVI Domingo comum C: Lc 16, 19- 31.
No evangelho de hoje, Lucas 16, 19 – 31, Jesus conta uma história-parábola que, muitas vezes, foi mal usada pelas Igrejas. Por muito tempo, padres e pastores pregaram que esse mundo está mesmo perdido e a salvação será só depois da morte. Assim, quem é pobre deveria se conformar em sofrer e viver na indigência, confiantes de que depois da sua morte, terão o céu como recompensa. Quanto aos ricos, podem aproveitar bem a vida que levam e, como Deus é bom, antes de morrer, se convertam, deixem algum dinheiro para obras da Igreja e entrem em alguma confraria que celebrará missa por suas almas até o fim do mundo...
É incrível como até hoje esse tipo de postura religiosa, individualista e antievangélica continua, de um modo ou de outro, a ser praticado. No Congresso Nacional, evangélicos e também católicos tradicionalistas formam a bancada da Bíblia, mas sem nenhuma sensibilidade em relação aos sofrimentos das pessoas empobrecidas. Rezaram o Pai-Nosso enquanto comemoravam a aprovação de PEC da blindagem e da bandidagem e a instituição de voto secreto. Abuso da dimensão de fé. Parecem exatamente com esse rico anônimo do evangelho que é posto em confronto com o pobre Lázaro.
É urgente reler o texto a partir do seu contexto. Todo o capítulo 16 de Lucas discute a questão sobre como quem é discípulo ou discípula de Jesus deve viver a relação com a riqueza. Por trás desse capítulo, estava a denúncia de que os religiosos ligados ao templo e à sinagoga eram apegados ao dinheiro. É a eles que essa história se dirige. É possível que o evangelho a tenha tomado de um antigo conto egípcio. Em todos os evangelhos, essa história-parábola é a única na qual um dos protagonistas tem nome próprio. Ele é descrito como pobre, mendigo e se chama Lázaro: nome hebraico que significa “Deus ajuda”. Apesar de começar dizendo “havia um homem rico e um homem pobre”, não comenta sobre qualidades morais. Não diz que o rico era mau e o pobre era bom. O que caracteriza o rico é a roupa de luxo, os divertimentos, e a fartura na refeição. O rico se veste de púrpura. Trata-se de uma roupa que passou pela tintura vermelha da secreção de vários caracóis marítimos raros. Por isso, era roupa distintiva de reis, príncipes e, conforme o livro do Êxodo, fazia parte dos paramentos sacerdotais (Ex 28, 5). Que esse rico da história se vestia de púrpura parece irônico, como é, hoje, afronta aos pobres ver padres e pastores que gostam de usar paramentos dourados e luxuosos nas celebrações.
Ao contrário, o pobre é descrito como maltrapilho, com o corpo coberto de feridas e exercia a mendicância na porta do rico. Ambos morrem e a situação se inverte. O rico sofre nas chamas do fogo e pede socorro e Lázaro é acolhido no seio de Abraão, expressão única em todo o evangelho e que parece revelar o carinho e a opção que Deus tem pelos pobres, já que na história, o Pai Abraão representa Deus.
Dos quatro evangelhos, o texto de Lucas é o mais crítico contra a riqueza (Mamon). Já no início do evangelho, Lucas coloca no cântico de Maria palavras muito radicais: “ Ele derruba os poderosos dos seus tronos e levanta os humilhados. Dá fartura aos que têm fome e manda os ricos embora, com as mãos vazias (Lc 1,52-53). Nas Bem-aventuranças, Lucas é o único que, além das esperanças para os pobres, ameaça os ricos: “Ai de vocês que agora são ricos, pois já tiveram a sua vida boa. —Ai de vocês que agora têm tudo, pois vão passar fome. —Ai de vocês que agora estão rindo, pois vão chorar e se lamentar” (Lc 6,24-25).
Na história do evangelho de hoje, parece que Jesus diz que essa inversão de situações só se dá depois da morte. Se isso for compreendido como projeto divino, estamos interpretando o evangelho de modo errado. Jesus conta essa história como profeta para advertir aos discípulos e discípulas de que eles devem se converter aqui e agora, enquanto é tempo.
É claro que a parábola se situa em uma cultura que distingue, de um lado, a realidade desse mundo e do outro, da vida depois da morte. Essa imagem ainda dualista faz parte da cultura da época e Jesus não se preocupa em evitá-la. De todo modo, a história deixa claro que o decisivo é a vida aqui e agora, no mundo. Não adianta querer mudar as coisas depois da morte. Na tradição católica, poderíamos até dizer que não adianta missa de defunto para quem na vida não foi sensível e solidário aos irmãos e irmãs empobrecidas. Para Jesus, o que importa é que postura tomamos diante das profundas desigualdades que ferem o nosso mundo e aparecem em torno de nós. Jesus forma os seus discípulos e discípulas para se organizarem como comunhão de vida e partilha do que somos e do que temos.
Nas primeiras comunidades cristãs, uma questão delicada foi a relação dos discípulos e discípulas de Jesus com o dinheiro e as riquezas. Já vimos no domingo passado que a proposta de Jesus é que possamos colaborar para uma economia solidária e em função da Vida. Conforme o texto, o rico pede ao Pai Abraão: “Mande que Lázaro molhe o dedo na água e venha refrescar a minha língua”.
Mesmo naquela situação, o rico continua vendo o pobre como mero serviçal e é exatamente as características acima que serão as acusações e defesas no julgamento. A história fala do pai Abraão como sendo Deus. E diz que Abraão responde ao rico: “Meu filho, lembre que você recebeu na sua vida todas as coisas boas, porém Lázaro só recebeu o que era mau. E agora ele está feliz aqui, enquanto você está sofrendo” (v. 25).
Diante da sentença de Deus, o rico fala como se, durante a vida, não tivesse se dado conta de ter escolhido uma forma de vida na qual o outro não existe. É isso que constitui o inferno: a incapacidade de conviver com as outras pessoas e de pensar no bem-comum. A realidade depois da morte só revela ao rico de modo mais claro o que ele tinha construído durante a vida inteira. Como se pudesse mudar isso, o rico pede a Abraão para mandar Lázaro avisar a seus irmãos. Avisar de quê?
De fato, para quem se enriqueceu explorando outras pessoas, o outro não existe e se há sofrimento do mundo, a pessoa pensa que nada tem a ver com isso. “Não é problema meu”.
Depois da guerra na Alemanha, muitas pessoas disseram que apoiavam o governo nazista porque não sabiam dos campos de concentração. Esqueceram de dizer que faziam de tudo para não saber. Muitas pessoas crentes votam em governantes assassinos e cruéis dizendo não saberem que é assim.
Na história-parábola, fica claro que essa postura esconde uma indiferença que é perversa. Hoje, a mesma palavra pode ser dita por quem opta pelos políticos de direita e de extrema-direita que constituem 70% do Congresso Nacional: “Se não escutam Moisés nem os profetas, não vão crer, mesmo que alguém ressuscite.” Ou seja, se não ouvem a palavra de Deus nas entranhas da história e das relações humanas e sociais, não ouvem mais ninguém.
Em geral, as pessoas pensam no rico avarento ou insensível e no pobre generoso. A parábola não discute sentimentos, nem do rico, nem do pobre. O que é levado em consideração é a vida que um e o outro leva. A injustiça provém da riqueza em si e da desigualdade que ela provoca. Quem vive na riqueza se entrega à riqueza como ídolo. O evangelho chama isso de idolatria, já que Mamon, o deus do dinheiro é um ídolo. A riqueza é idolatria, porque a sua lógica passa a ser a lógica dos seus interesses e do seu lucro e não a proposta de Deus no mundo.
Hoje, esse sistema idólatra se expressa no Capitalismo que cria o inferno aqui na terra. Na lógica capitalista, não existe possibilidade de amor e solidariedade. Tudo é pensado e organizado em proveito próprio. Atualmente, no Congresso Nacional, grande parte dos congressistas dá ao povo o testemunho triste de que estão ali não para representar a população e servir ao bem comum, mas, sim, para explorar o bem público em benefício de si mesmos e de seus aliados. Quem vota nessas pessoas tem a responsabilidade de ser conivente, como quem segura a escada para o ladrão subir.
O evangelho apresenta a vida do rico como algo que conduz a um lugar de tormento. É o que a tradição cristã chama de inferno. O inferno contradiz Deus. Nem Deus pode mudar. Deus não criou inferno, nem condena ninguém ao inferno. Conforme essa parábola, o próprio Deus revela que não pode mudar a situação. Nem Deus pode fazer as pessoas deixarem o egoísmo, o individualismo, a indiferença e o desamor. A parábola conta de forma simbólica e em termos antigos que é a opção que as pessoas fazem nessa vida, aqui e agora que determina que suas vidas e seu futuro sejam salvos, ou irremediavelmente perdidos.
Em nosso mundo atual, não se trata apenas da avareza como virtude moral e do amor ao dinheiro que desviam os corações de pessoas. Trata-se, sim, de um sistema que domina o mundo e que erige o lucro como dogma fundamental acima da própria vida humana e da vida no planeta. É a idolatria da riqueza como sistema e opção de vida.
Na política, muitas vezes, é necessário fazer malabarismos para se construir juntos um projeto de nação. No plano da fé, a espiritualidade também exige opções e escolhas nem sempre fáceis. A Sinodalidade que o saudoso Papa Francisco propunha como modo normal da Igreja ser tem que se expressar não apenas nas relações sociais mas na forma como a Igreja, as ordens religiosas e as comunidades cristãs exercem a economia e lidam com o dinheiro. Que o Espírito de Deus nos conduza no caminho da comunhão ao serviço da Vida.
cantada por Zé Ramalho (1992).
'Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Era quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vem um cidadão
E me diz, desconfiado
Tu 'tá aí admirado
Ou 'tá querendo roubar?
Meu domingo 'tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer
'Tá vendo aquele colégio, moço?
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente
Pai, vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar
Essa dor doeu mais forte
Por que é que eu deixei o norte?
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer
'Tá vendo aquela igreja, moço?
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá foi que valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse
Rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar
Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asa
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar
Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio, fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar