Quando o templo é tomado pela Profecia
Para mim esse é um dos maiores desafios da espiritualidade: de um lado, inserir-se nas religiões como dignas expressões das culturas humanas e nas quais o Amor Divino aceita se manifestar. No entanto, ao mesmo tempo que inserir-se nesse caminho religioso, transformá-lo de acordo com a Profecia que vai além da religião e mostra o Espírito presente e atuante no mundo e não só no templo ou no rito.
Desde séculos antigos, as Igrejas orientais e também a Católica e algumas evangélicas históricas dedicam o 40º dia depois do Natal (2 de fevereiro) à memória da Apresentação de Jesus no templo. Os orientais chamam essa festa: Hipapanté: o encontro do Senhor com o seu povo.
De acordo com o evangelho (Lucas 2, 22- 40), os pais levam Jesus ao templo. Os relatos dos dois primeiros capítulos de Lucas são comentários narrativos de textos do primeiro testamento para mostrar que Jesus é o prometido de Deus nas profecias. Esse texto se baseia em Ex 13, 2 e em algumas passagens proféticas como Malaquias 3 que prometem a vinda do Messias para com sua presença santificar o templo. De fato, se fosse para cumprir o rito normal de qualquer criança judaica, o evangelho deveria ter falado no rito da purificação da mãe e o texto só alude a isso. Deveria ter falado no rito do resgate do primogênito e o texto não toca nisso. Quando levam o menino Jesus ao templo, o que acontece é o encontro de dois velhos profetas com o menino e o anúncio da Páscoa dito a Maria.
Assim sendo, a celebração dessa memória da apresentação de Jesus no templo nos faz perguntar: Como se dá esse mergulho do Divino em nós, na nossa vida, hoje?
Conforme o Evangelho lido nessa festa (Lucas 2, 22- 40), na hora em que Jesus é apresentado ao templo, ele passa a fazer parte do seu povo. Para os pais (Maria e José) que levam o menino ao templo, o que importa é o cumprimento da lei. Eles são tão pobres que não podem oferecer o sacrifício “normal” para a ocasião e ofertam aquilo que a lei diz que apenas as pessoas mais pobres e indigentes podem oferecer: um casal de rolinhas (Lv 12, 8).
O evangelho de Lucas mistura dois ritos judaicos: 1 - a purificação da mãe e 2 - a apresentação do filho. Conforme a lei, no caso do primeiro filho de um casal, eles deveriam fazer o “resgate do primogênito”, um sacrifício pelo qual a família pedia ao Senhor para ficar com o menino, mas, ao mesmo tempo, prometiam que ele seria sempre consagrado a Deus (Cf. Ex 13, 2. 12. 15). A comunidade de Lucas não faz nenhuma alusão ao rito do resgate do primogênito. Talvez não fale do resgate do menino porque era de pouco interesse para os não judeus, aos quais a comunidade de Lucas se dirige. Antigos pastores da Igreja interpretaram que o evangelho não fala desse rito do resgate do menino para deixar claro: desde o início de sua vida, o menino já pertencia mesmo a seu Pai do céu. Ele é apenas apresentado, não para se purificar e sim para purificar o templo, ou seja para transformar a religião. E como seria essa transformação?
O evangelho conta a apresentação de Jesus no templo, mas no lugar de falar dos sacerdotes que o receberam, prefere destacar duas figuras menos importantes para o templo: dois velhos, um homem e uma mulher que exerciam não o sacerdócio, mas a profecia.
No tempo em que Lucas escreveu o evangelho (anos 80), não existia mais o templo de Jerusalém. Os romanos o tinham destruído. Por causa desse desrespeito trágico à vida e à cultura dos judeus, Lucas sempre mostra o templo de forma positiva. Diferentemente de Marcos e João. No entanto, mostra que, no templo, o importante não é o culto sacerdotal. É o exercício da profecia (Isaías e Amós foram profetas que exerceram a profecia no ambiente de templos). Assim, até o templo pode ser lugar da profecia. Jesus que antes já fora reconhecido pelos pobres (pastores), agora é reconhecido pelos profetas O Evangelho sublinha que a profecia tem um jeito masculino com Simeão e um estilo feminino com Ana. É a partir daí que Simeão profetiza sobre Jesus: “luz para os gentios, salvação para todos os povos e glória para Israel”. É um casal simbólico: Simeão e Ana. Simeão profetiza que Israel pode alegrar-se porque deu Jesus à humanidade, mas este será luz para todos os povos e não só para uma determinada religião. Esse casal de profetas representa também a importância dos mais velhos na comunidade. Atualmente, nesse nosso mundo dominado pela produção e pelo dinheiro, muitas vezes, as pessoas mais velhas são marginalizadas, ao contrário, de caminhos espirituais como as religiões afro-brasileiras e indígenas, nas quais os mais velhos têm um papel preponderante.
Muitas vezes, as pessoas perguntam: - E essa história de que Jesus vai ser sinal de contradição e uma espada de dor... Ele estava falando da cruz? Sim e não. Sim porque concretamente há uma referência à morte de Jesus (uma espada de dor traspassará a tua alma). Mas, penso que, mais profundamente, se trata da própria verdade de Deus (e da vida), manifestada por Jesus. Deus sempre pede de nós uma escolha: um sim ou um não. É uma decisão que sempre se traduz em um sim ou um não à vida. Conforme o livro sagrado da mística judaica, o Zohar, o símbolo da espada traduz o Nome de Deus (YHWH). Nesse caso, poderíamos entender que a revelação de Deus que Jesus traz atravessa a vida de Maria tão intimamente que não a livra da exigência de crer e escolher. Essa me parece uma interpretação mais ligada ao contexto e às outras referencias que em Lucas dizem respeito à mãe de Jesus. Na primeira versão do meu livro “Conversa com o evangelho de Lucas”, a querida e saudosa irmã Agostinha comentou: - A velha Ana é símbolo dessa espera feminina do messias: é mulher profetisa, anciã e viúva. No cristianismo primitivo, a categoria das viúvas era muito valorizada na comunidade (Cf 1 Tm 5, 5- 9). A mulher podia ser profetisa, isto é, falar em público na Igreja e ter uma função ativa na comunidade. Hoje, muitos grupos de base são coordenados por mulheres, mas em algumas Igrejas tradicionais, o ministério feminino ainda é pouco reconhecido e valorizado.
O Xamã Davi Kopenawa no livro “A queda do céu” afirma que, para a espiritualidade ianomâmi, esse encontro do Espírito Divino com o povo indígena se dá quando os Xapuri, espíritos da floresta, vêm dançar no meio da mata para proteger os seres vivos ameaçados e se comunicar com os Xamãs.