2o Domingo do Advento – Mc 1, 1- 8.
Convocação para reconstruir a história
“Vai ser tão bonito se ouvir a canção, cantada de novo
No olhar da gente, a certeza de irmãos, reinado do povo.
No olhar da gente, a certeza de irmãs, reinado do povo”.
Quando você escutar alguém dizer que a vida é assim mesmo e o mundo não tem conserto, proponha à pessoa a leitura do início do livrinho que é o único do Novo Testamento que se intitula de “evangelho” (termo grego para boa notícia) e que a tradição cristã atribui a Marcos e à sua comunidade.
Por feliz coincidência, neste ano de 2023, o 2º Domingo do Advento cai no Dia Universal dos Direitos Humanos. Lembra o 10 de dezembro de 1948, no qual a assembleia geral da ONU assinou e promulgou a Declaração dos Direitos Humanos, que, ainda em nossos dias, é tão ignorada e desrespeitada por governos e Estados, mesmo os que se dizem os mais democráticos e até usam o nome de cristãos.
Neste 2º domingo do Advento, do ano B, o lecionário propõe a leitura de Marcos 1, 1- 8. No primeiro século da era comum, no mundo dominado pelo império romano, chamavam-se de evangelhos os decretos de anistia dados pelo imperador e espalhados pelas cidades do império, para acalmar as populações colonizadas e ajudá-las a melhor aceitar o peso dos tributos. Na época, evangelhos eram as propagandas imperiais e, geralmente, eram notícias de vitórias militares do império. E se legitimavam religiosamente ao proclamarem que o imperador era filho de Deus e as conquistas eram ações divinas através do povo eleito por Zeus, ou Júpiter ou outro deus que legitimava o domínio de um povo sobre os outros.
Atualmente, de modo diferente, mas igualmente enganador, espalham-se pelo mundo novos evangelhos imperiais. O governo dos Estados Unidos mantém estruturas religiosas que o apresentam como escolhido de Deus para governar o mundo. As células de dólar continuam com a inscrição “Nós confiamos em Deus”. O Estado de Israel continua a espalhar que Israel é o povo eleito de Deus e tem direito religioso à terra dos palestinos. No mundo atual, não faltam falsos evangelhos, tanto no âmbito político, como mesmo nos ambientes religiosos.
A comunidade de Marcos coloca como título do seu livro: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”. O termo evangelho, ou boa notícia é tomado do uso político da época para afirmar que as boas notícias não podem vir dos impérios. O verdadeiro evangelho é a vinda do reinado divino no mundo trazido por Jesus.
Já no título do seu escrito, Marcos confere a Jesus dois títulos: chama-o de Cristo e de “filho de Deus”. O título Cristo é o termo grego correspondente ao hebraico Messias, isso é, o ungido do Senhor, ou consagrado, enviado por Deus para libertar o povo. Messias, ou Cristo é o símbolo e garantia de que podemos acreditar e esperar no reinado do povo.
No tempo dos evangelhos, o título de Filho de Deus era reservado ao imperador romano. Marcos diz que não é o imperador ou qualquer poderoso do mundo que é filho de Deus. Pode-se considerar “filho de Deus” quem atua e vive como Deus que é Amor e Inclusão absoluta, fonte de Vida e de Felicidade. Quem nos mostrou isso pela sua vida foi Jesus de Nazaré. Ele é o Cristo que nos convoca para testemunhar que o reinado do povo é possível e urgente. Jesus cumpriu de forma tão perfeita essa função de Cristo que o título se tornou sobrenome: Jesus Cristo.
Na história do mundo, podemos chamar várias pessoas de Cristo, ou seja, ungidas de Deus. Na história, Buda, Maomé e tantos outros cumpriram esta função. Para a África do Sul e para o mundo inteiro, Nelson Mandela, ao consagrar a sua vida à luta pacífica pelo fim do racismo, significou isso. Foi um Cristo que depois de lutar pela libertação do povo negro e pelo fim do racismo, depois de 20 anos de prisão, saiu humano, ecumênico e capaz de liderar o país para outro tempo. Na América Latina e no Brasil, desde os meados do século passado, milhares de pessoas têm dado a vida no testemunho da justiça e da Vida para todos e todas.
Depois de nos dizer isso no título do seu escrito, (v 1), esse evangelho diz que a partir disso é possível um novo princípio (arché). Como o princípio da criação do mundo e da vida. O livro de Marcos quer contar o início dessa boa notícia. Sua continuidade e expansão se dão para além do que esse evangelho contém. É a caminhada da história na qual o projeto divino vai se desenrolando em meio a todas as lutas e conflitos. Mas, para podermos ver que essa boa notícia continua germinando o reinado divino, precisamos sempre relembrar como foi o início. Conforme Marcos, esse começo se dá sempre no deserto.
Conforme a Bíblia, no primeiro Êxodo, quando Deus conduziu o povo hebreu, escravizado, da terra da servidão para a liberdade, o deserto foi o caminho para a terra prometida. Foi no deserto que Deus educou o povo e o preparou para a libertação e para viver a aliança. (Atenção para a diferença entre povo hebreu e o Estado judeu ou israelita. O povo hebreu era o povo sem-terra, como o povo palestino de hoje). Agora, conforme o evangelho, novamente, é no deserto que se prepara a nova aliança. O grito de João Batista no deserto clama por mudanças. Exige vida nova.
É preciso até hoje escutarmos os gritos no deserto que pedem mudanças como gritos evangélicos que preparam o reino de Deus. É preciso hoje no Brasil escutarmos os gritos do povo excluído, principalmente, dos povos originários, das comunidades negras e do povo jogado nas ruas pelo desemprego e pela exclusão social planejada pelo sistema excludente.
O evangelho diz que aquele novo começo no deserto cumpre profecias antigas. Ele cita o nome de Isaías, mas une no texto, palavras de várias profecias antigas, principalmente Isaías e Malaquias. Esses textos do primeiro testamento, citados nesse texto do evangelho, se referiam a algo que o Judaísmo considerava que seria o fim da história, a meta dos tempos. O evangelho de Marcos reinterpreta esses textos trazendo-os para dentro da história. O projeto divino não é algo somente para o fim dos tempos. Ao contrário, é para aqui e agora. É no concreto da vida e da história, no compromisso social e político e em todas as dimensões da vida que ocorre a ação libertadora que o Espírito Divino inspira e nos guia para realizarmos.
Não basta prepararmos o Natal na Igreja, em nossas casas e no nosso coração. Essa dimensão da preparação interior é importante, mas a conversão tem de se expressar em mudanças na vida social.
O evangelho de Marcos faz duas subversões. Primeiramente, ele subverte a cultura romana por se apropriar do termo Evangelho que só era usado para atos do imperador romano e, além disso, subverte também a cultura judaica, quando traz para o hoje de nossas vidas, um fato que o Judaísmo da época acreditava que só ocorreria no final do mundo.
Nos versículos 6 a 8, o Evangelho apresenta João Batista como profeta. Pelo seu modo de viver e até de vestir, João é profeta. A sua profecia é proclamar o batismo como ritual simbólico de transformação da vida. Significa mergulhar na água e sair dali para uma vida nova. Hoje, existem grupos espiritualistas que praticam ritos de purificação e renovação. Há até pessoas que fazem terapias de renascimento – falam em vidas anteriores...
Temos de valorizar a busca das pessoas por renovação de vida e por transformação interior. Isso é válido e importante e os caminhos religiosos podem ajudar nesse processo. Só que, de fato, o rito do mergulho, proposto pelo profeta João não era só de renovação individual. Era para significar a renovação do mundo. Todo mundo tem necessidade de mudar de vida. No entanto, ao insistir nisso, João Batista revela que está só começando. Anuncia que virá alguém maior do que ele. Referia-se a Jesus. Conforme esse evangelho, Jesus começa a sua missão como discípulo de João Batista, mas tem uma missão ainda mais importante do que a missão do profeta que pregava e batizava no deserto.
Ao afirmar que não é digno de desatar as sandálias do Cristo, João Batista não está se mostrando humilde. O sentido é outro. Está dizendo que é Jesus quem vai renovar a aliança de Deus com a humanidade. Ele, João é apenas o profeta que anuncia isso.
João Batista anuncia uma época nova para a história através do rito e da sua pregação no deserto. No mundo atual e em nossas vidas concretas, o que significa o deserto? Para Jesus e para o povo da Bíblia, o deserto significou lugar de silêncio, de caminho para o novo e de ensaio para o amanhã. Na realidade de hoje, a que isso corresponde?
Não podemos pensar este Advento só para dentro das Igrejas e nem o Natal apenas como recordação do nascimento de Jesus. Somos chamados/as a ser como João Batista, profetas e profetizas que apontam para a humanidade o caminho novo de renovação e transformação do mundo. Por mais que vivamos em tempos difíceis e desafiadores, por mais que o mundo pareça estar afundando, este evangelho nos pede que assumamos um olhar positivo e confiante sobre o futuro do mundo. É preciso colhermos mesmo os menores e mais insignificantes sinais de esperança que acontecem ao nosso redor. É preciso reconstruir a possibilidade de uma vida nova e feliz para a humanidade e em comunhão com a natureza. A filósofa espanhola Maria Zambrano dizia que “a vida é grávida do futuro”. É preciso que crentes e não crentes se unam a preparar este novo Natal de uma humanidade reconciliada e capaz de se unir a serviço da vida.