Saudade futurista
Hoje, mais um dia de recuperação da cirurgia. Passei o dia inteiro, relendo e classificando poemas da querida e saudosa irmã Agostinha (Vieira de Mello) para publicá-los em um livro que possa ser partilhado com todos. Todos foram escritos em um círculo que vem dos anos 80 até 2010. Alguns fazem referência a eventos como encontros do CEBI, reuniões das pequenas comunidades religiosas inseridas e pessoas que ela encontrou nos anos 90. No entanto, ao menos para mim que a tive como amiga e conselheira por mais de 50 anos, todos esses poemas e outros escritos que ela deixou expressam uma atualidade forte e esperançosa. Ler, reler, classificar por datas e por assuntos, foi uma forma maravilhosa de reviver encontros saborosos que me dão saudade, mas que com ela aprendo a que seja “saudade futurista”. É justamente o título de um pequeno poema, escrito em um pequeno pedaço de papel solto, como se encontrado ao acaso e no qual, ela, para não perder a inspiração, depois de meditar ou orar, rabiscou com uma letra apressada, quase mal acabada:
Saudade futurista
na direção
do Volante da Vida
Saudade de quem ainda vem vindo
anônima e digna
como uma princesa apaixonada.
(embaixo, uma anotação preciosa:
29 de março de 2002, sexta-feira santa, à espera da Páscoa).
Essa expectativa da celebração da Páscoa como espera de alguém que se ama muito, eu a vivo desde que descobri a Páscoa como ensaio poético, louco e quase irreal de uma ressurreição (nova insurreição) em minha vida e na vida do mundo. Difícil de explicar como quando descobri que no hebraico antigo, usado na Bíblia, passado e futuro se confundem.
(Aharon) significa “aquilo que está à frente”[1]. E futuro, lifne, significa aquilo que ficou para trás. Não parece contraditório?
Quem olha a história e a vida a partir dos pequenos e marginalizados sabe que não é. Se você perguntar aos povos indígenas que futuro desejam, eles responderão que querem retomar o que viviam lá atrás no passado, quando podiam expressar e desenvolver o projeto original de sua cultura, do seu modo de viver.
Para o povo de Israel, qual era o futuro justo e melhor para os pobres? Seria a sociedade mais desenvolvida do Egito? Seria o progresso da Babilônia ou das cidades-estado dos cananeus que tinham uma cultura muito mais desenvolvida do que os hebreus? Ou seria normal que eles preferissem muito mais a sociedade tribal que eles tinham vivido antigamente?
Era, certamente, a sociedade tribal. Ali estava a possibilidade de justiça. Ali estava a proposta de repartição das terras. O progresso que eles tinham vivido era de concentração da terra, divisão de classes e aumento da injustiça. Para os mais pobres, é isso que significava o progresso. Será que até hoje, não é assim ainda?
No Brasil, o progresso apontado como futuro tem sido a destruição da Amazônia, a poluição dos rios, nossos alimentos contaminados por agrotóxicos e misturados com cereais produzidos com sementes transgênicas. Para a população de Minas Gerais e outros estados que vivem sob a ameaça do rompimento de novas barragens de lama tóxica da Vale do Rio Doce, o que é o futuro apresentado pela sociedade dominante?
Esse modelo de desenvolvimento serve pra quem? para quê? Que futuro indica ? Que rumo aponta? Não é o de salvar a vida na terra. Não é o de possibilitar uma terra humanizada e justa, na qual todo mundo viva em comunhão com a natureza.
A esperança da ressurreição é entrar na “conspiração das testemunhas” (expressão do teólogo Karl Barth no início do século XX) para reafirmar que a Vida tem a última palavra, como a princesa apaixonada do pequeno poema de Agostinha. Estamos nessa.
[1]- BASTIAAN WIELENGA, Reorientar nossas esperanças?, in Cadernos Fé e Política, n. 11; 1994, p. 19.